Número 2

São Paulo, quinta-feira, 19 de dezembro de 2002 

"Os verdadeiros versos não são para embalar, mas para abalar" (Mario Quintana)
 


Cassiano Ricardo


Caros amigos,

Cassiano Ricardo (1895-1974) é um poeta que sempre me fascinou, desde adolescente. Talvez como nenhum outro, ele trouxe para a poesia alguns traços marcantes do século 20 no segundo pós-guerra. Em seu livro João Torto e a Fábula (1956), o personagem do título é um sujeito deformado, sobrevivente da bomba atômica.

Depois, com a guerra fria e a corrida espacial, ele criou outro personagem, que está no título de Jeremias Sem-Chorar (1964). Nesse livro, Cassiano retoma o personagem bíblico, aquele das lamentações, mas num mundo em que o pranto lhe é vedado. Esse Jeremias tem sete razões que o impedem de chorar. A primeira, diz o poeta, é "haver perdido um olho no comício. Uma patada de cavalo montado por certo mantenedor da ordem pública o reduziu a meia-lua":

Um coice de cavalo
no comício
e eu — Jeremias seco —
olho de vidro.


Em Jeremias estão enredadas a tradição bíblica, a tecnologia de exploração do espaço, a cibernética e a falta de liberdade política. Cassiano costura tudo isso com a linha de uma forte preocupação humanista. Ele põe, lado a lado, a precisão da máquina e a precisão humana:

entre duas palavras iguais
a precisão e a precisão,
como ser neutro (...)?


Ao lado, quatro amostras do trabalho de Cassiano. Em "Rotação" e "Viagem em Círculo", o autor trabalha com a idéia de movimento da Terra (círculo, rotação, repetição) e renovação da esperança humana de encontrar uma saída. Uma nova esperança na esfera. Segundo o autor, são poemas "esfero-rolantes". Têm um moto-contínuo, no qual se pode entrar por qualquer ponto e continuar girando.

O segundo poema, "Ladainha", faz indagações a respeito da automação e da cibernética. Vale chamar a atenção para a visão que se tinha nos anos 1960, e mesmo depois, sobre a automação como uma fonte de ócio. Não é bem o que se viu nos últimos dez anos. É muito mais uma fonte de negócio. A propósito de cibernética, creio que Cassiano foi o primeiro, ou um dos primeiros, a falar em computador (cérebro eletrônico) na poesia brasileira.

"Ladainha", "Rotação" e "Viagem em Círculo" estão no livro Jeremias Sem-Chorar. O último exemplo é o micropoema “Serenata Sintética", extraído do livro Um Dia Depois do Outro (1947). Nesse poema, Cassiano mostra a incrível capacidade de pintar uma cena com apenas seis palavras.

Poeta e ensaísta ativo, membro da Academia Brasileira de Letras, Cassiano Ricardo começou parnasiano, foi modernista de primeira hora e, já sessentão, manteve intenso diálogo com as vanguardas (poesia concreta, poesia práxis etc.).

Mesmo assim, ele é hoje um escritor quase clandestino: estranhamente, não se encontra nenhuma de suas obras nas livrarias, nem mesmo uma antologia. Segundo consta (não sei se é verdade), os detentores dos direitos autorais dele de alguma forma embargam as reedições. Uma pena.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

Jeremias Sem-Chorar

Cassiano Ricardo

 

ROTAÇÃO

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
            a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
de novo a esperança
            na esfera

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
            a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
           na esfera

a esfera
em torno de si mesma
me ensina a espera
a espera me ensina
           a esperança
a esperança me ensina
uma nova espera a nova
espera me ensina
uma nova esperança
          na esfera
 


VIAGEM EM CÍRCULO
               (REPETIÇÃO)

a esperança me o-
briga a caminhar
em círculo em tor-
no do globo em tor-
no de mim mesmo em
torno de uma mesa
de jogO

até que o zodíaco
pára e a noite cos-
tura-me a boca a
retrós preto/ mas
eu fico impresso
no olho do dia o-
bsoletO

viagem em círculo
sem ida nem venida
sem nenhuma aveni-
da/ adeus com a mão
esquerda/ amanhã
recomeçO

entre e um e outro
julho entre um e
outro crepúsculo a
cidade que busco
como hei de encon-
trá-la/ ouço-lhe a
fala mas estou na
outra sala/ amanhã
recomeçO

a esperança é um
círculo no zodía-
co na ciranda na
roleta na rosa do
circo na roda do
moinho
amanhã recomeçO

em que lado do glo-
bo terá cessado o
diálogo da ovelha
e do lobO
                  ?



LADAINHA

Por que o raciocínio,
os músculos, os ossos?
A automação, ócio dourado.
O cérebro eletrônico, o músculo
mecânico
mais fáceis que um sorriso.

Por que o coração?
O de metal não tornará o homem
mais cordial,
dando-lhe um ritmo extra-
                        corporal?

Por que levantar o braço
para colher o fruto?
A máquina o fará por nós.
Por que labutar no campo, na cidade?
A máquina o fará por nós.
Por que pensar, imaginar?
A máquina o fará por nós.
Por que fazer um poema?
A máquina o fará por nós.
Por que subir a escada de Jacó?
A máquina o fará por nós.

Ó máquina, orai por nós.

 


SERENATA SINTÉTICA


Lua
morta

       Rua
       torta

Tua
porta


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2002

Foto: B.J. Duarte

Cassiano Ricardo
• "Rotação", "Viagem em Círculo" e "Ladainha"
   In Jeremias Sem-Chorar
   José Olympio, 1968, 2a. ed. revista
• "Serenata Sintética"
   In Um Dia Depois do Outro
   Cia. Editora Nacional, 1947