Número 55

São Paulo, quarta-feira, 11 de fevereiro de 2004 

«Todo amor está perdido/ ao nascer.» (Ruy Espinheira Filho)
 


Wallace Stevens


Caros amigos,

O americano Wallace Stevens (1879-1955) era um cidadão em quem o senso comum não espera encontrar um poeta. Formado em direito, trabalhou longos anos numa companhia de seguros, onde chegou a vice-presidente. Conservador, casmurro e de poucos amigos, ele sempre manteve separadas as atividades de executivo e de poeta.

Para este boletim, selecionei dois poemas de Stevens. O primeiro, "O Homem do Violão Azul", de 1937, é um longo texto dividido em 33 partes (aqui são mostradas apenas as duas iniciais). Entre as idéias discutidas nesse poema, destaca-se a relação entre a arte e a realidade.

O outro poema, "O Imperador do Sorvete", vem do primeiro livro de Stevens, Harmonium, publicado em 1923. Nesse volume, o poeta apresenta uma poesia hermética, mas ao mesmo tempo capaz de impressionar o leitor.

As versões dos textos em português são do poeta carioca Paulo Henriques Britto e estão no volume Poemas (Cia. das Letras, 1987).


Um abraço,


Carlos Machado



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Navio negreiro paulistano

Escrito em 1869, o poema "O Navio Negreiro", do baiano Antonio de Castro Alves, inspirou o cineasta Amílcar Monteiro Claro a elaborar o curta-metragem Imensidade (2003). Nesse filme, a atriz Débora Duboc faz Idalina, mulher que perambula vestida de noiva pelas ruas do centro de São Paulo. Apresenta-se como "a noiva de Cecéu", o apelido familiar do poeta Castro Alves.

A grande sacada do filme é traçar um paralelo entre os africanos seqüestrados de seu continente e os moradores de rua da metrópole paulistana. Tudo pontuado pelos versos do poeta. Veja o filme (15 min.) no site Porta-Curtas.

Imensidade traz à lembrança o volume Leonídia, a Musa Infeliz do Poeta Castro Alves, de Myriam Fraga (Fundação Casa de Jorge Amado, 2003). O livro é uma biografia de Leonídia Fraga, uma das namoradas de Castro Alves, que nunca se libertou da paixão pelo poeta e terminou os dias internada num hospício.

O homem do violão azul

Wallace Stevens

 

 


Pablo Picasso, O Velho Guitarrista (1903)



O HOMEM DO VIOLÃO AZUL

 

I
Homem curvado sobre violão,

Como se fosse foice. Dia verde.


Disseram: "É azul teu violão,

Não tocas as coisas tais como são".


E o homem disse: As coisas tais como são

Se modificam sobre o violão".


E eles disseram: "Toca uma canção

Que esteja além de nós, mas seja nós,


No violão azul, toca a canção

Das coisas justamente como são".

 

II

Não sei fechar um mundo bem redondo,

Ainda que o remende como sei.


Canto heróis de grandes olhos, barbas

De bronze, mas homem jamais cantei.


Ainda que o remende como sei
E chegue quase ao homem que não cantei.


Mas se cantar só quase ao homem

Não chega às coisas tais como são,

 

Então que seja só o cantar azul

De um homem que toca violão.
 

 

THE MAN WITH THE BLUE GUITAR

I
The man bent over his guitar,
A shearsman of sorts. The day was green.

They said, "You have a blue guitar,
You do not play things as they are."

The man replied, "Things as they are
Are changed upon the blue guitar."

And they said to him, "But play, you must,
A tune beyond us, yet ourselves,

A tune upon the blue guitar,
Of things exactly as they are."

II
I cannot bring a world quite round,
Although I patch it as I can.

I sing a hero's head, large eye
And bearded bronze, but not a man,

Although I patch him as I can
And reach through him almost to man.

If a serenade almost to man
Is to miss, by that, things as they are,

Say that it is the serenade
Of a man that plays a blue guitar.

 

                         De The Man with the Blue Guitar, 1937
 

 

 





O IMPERADOR DO SORVETE


Chama o enrolador de charutos,

O musculoso, e pede que ele bata

Em xícaras caseiras cremes lúbricos.

Que as raparigas vistam as roupas

Que é seu costume usar, e os rapazes

Tragam flores no jornal do mês passado.

Que parecer termine em ser somente.

O único imperador é o imperador do sorvete.

Pega no armário de pinho,

Com os puxadores de vidro quebrados,

O lençol que ela bordou com pombas

E cobre todo o corpo dela, até o rosto.

Se um pé ossudo aparecer, verão

Que fria e dura que ela está.

Que fixe a lâmpada seu feixe quente.

O único imperador é o imperador do sorvete.
 


THE EMPEROR OF ICE-CREAM

Call the roller of big cigars,
The muscular one, and bid him whip
In kitchen cups concupiscent curds.
Let the wenches dawdle in such dress
As they are used to wear, and let the boys
Bring flowers in last month's newspapers.
Let be be finale of seem.
The only emperor is the emperor of ice-cream.

Take from the dresser of deal,
Lacking the three glass knobs, that sheet
On which she embroidered fantails once
And spread it so as to cover her face.
If her horny feet protrude, they come
To show how cold she is, and dumb.
Let the lamp affix its beam.
The only emperor is the emperor of ice-cream.

 

                         De Harmonium, 1923
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

In Wallace Stevens
Poemas   
Seleção, tradução e introdução de
Paulo Henriques Britto
Companhia das Letras, São Paulo, 1987