Número 63

São Paulo, quarta-feira, 7 de abril de 2004 

«A solidão é como chuva.» (Rainer Maria Rilke)
 


Adélia Prado


Caros,

A mineira Adélia Prado (1935-) faz uma poesia diferente. Seus versos situam-se no difícil território do cotidiano. Falam de ninharias domésticas, observações miúdas. Adélia vai surpreender a poesia na hora de tratar o peixe na cozinha ou no pouso da borboleta no quintal. Ela até ousa meter sua colher poética em briga de marido e mulher.

Professora em Divinópolis-MG, cidade onde nasceu e vive,  Adélia publicou seu primeiro livro, Bagagem, em 1976. Consta que, três anos antes, ela enviara os originais do livro ao poeta Affonso Romano de Sant'Anna. Este repassou-os a Carlos Drummond de Andrade, pedindo uma avaliação. O mestre itabirano não só considerou os textos de alta qualidade como sugeriu sua publicação a um editor.

Outra faceta da poesia de Adélia Prado é um forte espiritualismo, no qual se misturam símbolos do catolicismo com uma discreta sensualidade. O cotidiano está sempre presente, como pano de fundo. Os três poemas transcritos ao lado ilustram bem essas características. Todos foram extraídos do volume Poesia Reunida, que enfeixa seis livros da autora.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



 

No território do cotidiano

Adélia Prado

 




Waldomiro Sant'Anna, pintor paulista, A Bicicleta Verde



CASAMENTO

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como 'este foi difícil'
'prateou no ar dando rabanadas'
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

                   
De Terra de Santa Cruz (1981)

 


Waldomiro Sant'Anna, A Bandinha Furiosa




BRIGA NO BECO

Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mãos e palavras
que nunca suspeitei conhecer.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior,
                                             [fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo
                                           [ graças.
Desde então faço milagres.

                   
De Bagagem (1976)





Waldomiro Sant'Anna, A Rua dos Ipês Amarelos




ARTEFATO NIPÔNICO

A borboleta pousada
ou é Deus
ou é nada.

                   
De A Faca no Peito (1988)

 

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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

•  Adélia Prado
    Poesia Reunida
   
Ed. Siciliano, 10a. ed., São Paulo, 2001
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•  Imagens: quadros do pintor paulista
    contemporâneo Waldomiro Sant'Anna