Número 71

São Paulo, quarta-feira, 2 de junho de 2004 

«Quem não pode fazer versos como Baudelaire pode, porém, tingir os cabelos de verde.» (Fernando Pessoa)
 


William Blake


Caros amigos,

Pintor, entalhador, ilustrador de livros, o poeta romântico inglês William Blake (1757-1827) é considerado uma das vozes mais significativas da poesia de seu país. Sua página mais conhecida e admirada é "The Tyger" ("O Tygre"), mostrada ao lado. Composto apenas de perguntas, o poema tem dado pano para mangas aos exegetas de sucessivas gerações. 

O próprio Blake dizia que seu trabalho estava cheio de visões religiosas, e não tinha a ver diretamente com assuntos do dia-a-dia. Só que ele escrevia com um talento fora do comum. As tentativas de explicação desse tigre começam pelo título. Na opinião de alguns estudiosos, Blake escreveu "tyger", com Y, para sinalizar que aí está um tigre especial.

Quase todas as interpretações são unânimes em dizer que "The Tyger" tem a ver com outro poema de Blake, "The Lamb" — a ovelha, animal que também é citado no texto. O tigre e a ovelha (ou melhor: o cordeiro, para usar o mesmo termo da simbologia católica) seriam, para Blake, imagens da experiência e da inocência. Aliás, "The Lamb" integra o livro Canções de Inocência, de 1789, e "The Tyger" pertence a Canções de Experiência, de 1794. 

O cordeiro e o tigre representam não exatamente o bem e o mal, mas a condição humana de inocência (o jardim do Éden, nas religiões judaico-cristãs) e a vida atual do homem depois de sua expulsão do paraíso. Há também análises sustentando que o Cordeiro é Cristo.

Bem, vocês já viram que o poema fornece combustível para discussões intermináveis. O certo é que o tigre de Blake, com sua feroz simetria, envolve e encanta leitores há mais de 200 anos.

Um poema tão famoso tem, naturalmente, muitas traduções.
As duas que vão aqui transcritas levam as assinaturas de Augusto de Campos e José Paulo Paes, dois dos maiores responsáveis pela divulgação em português de poetas, modernos e antigos, dos mais variados quadrantes. Vale lembrar que a tradução de Paes foi feita para ilustrar o ensaio "Frankenstein e o Tigre", que está em seu livro Gregos e Baianos. O autor a considera uma "tentativa de tradução" e adverte que foi escrita "não para contrapô-la à criativa versão de Augusto de Campos".

Além dessas versões há várias outras, também de tradutores respeitáveis. Uma é de Paulo Vizioli, publicada no volume William Blake Poesia e Prosa Selecionadas (J.C. Ismael, Editor; São Paulo, 1984). Outra tradução que deve ser citada é de Ivo Barroso e está em seu livro O Torso e o Gato (Editora Record, 1991).

Um abraço,

Carlos Machado


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Trecho do crítico Alfredo Bosi sobre Blake:

"William Blake é o poeta e gravador que da sua escura oficina de Londres canta a Revolução dos Americanos contra a Inglaterra. É o místico que fez hinos à Revolução Francesa; o iluminado iluminista; o homem que quer derrubar os dois pilares ideológicos do século, simétricos e opostos: a hipocrisia dos moralistas e o racionalismo dos ímpios".

(Alfredo Bosi, em O Ser e o Tempo da Poesia; Ed. Cultrix/Edusp; São Paulo, 1977)

Tigre! Tigre!

William Blake

 

 

O TYGRE

                   
Tradução: Augusto de Campos

Tygre! Tygre! Brilho, brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz symmetrya?

Em que céu se foi forjar
o fogo do teu olhar?
Em que asas veio a chamma?
Que mão colheu esta flamma?

Que força fez retorcer
em nervos todo o teu ser?
E o som do teu coração
de aço, que cor, que ação?

Teu cérebro, quem o malha?
Que martelo? Que fornalha
o moldou? Que mão, que garra
seu terror mortal amarra?

Quando as lanças das estrelas
cortaram os céus, ao vê-las,
quem as fez sorriu talvez?
Quem fez a ovelha te fez?

Tygre! Tygre! Brilho, brasa
que a furna noturna abrasa,
que olho ou mão armaria
tua feroz symmetrya?




O TYGRE

                    Tradução: José Paulo Paes
  

Tygre, Tygre, viva chama
Que as florestas de noite inflama,
Que olho ou mão imortal podia
Traçar-te a horrível simetria?

Em que abismo ou céu longe ardeu
O fogo dos olhos teus?
Com que asas atreveu ao vôo?
Que mão ousou pegar o fogo?

Que arte & braço pôde então
Torcer-te as fibras do coração?
Quando ele já estava batendo,
Que mão & que pés horrendos?

Que cadeia? que martelo,
Que fornalha teve o teu cérebro?
Que bigorna? que tenaz
Pegou-te os horrores mortais?

Quando os astros alancearam
O céu e em pranto o banharam,
Sorriu ele ao ver seu feito?
Fez-te quem fez o Cordeiro?

Tygre, Tygre, viva chama
Que as florestas da noite inflama,
Que olho ou mão imortal ousaria
Traçar-te a horrível simetria?






THE TYGER


Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?

In what distant deeps or skies
Burnt the fire of thine eyes?
On what wings dare he aspire?
What the hand, dare seize the fire?

And what shoulder & what art,
Could twist the sinews of thy heart?
And when thy heart began to beat,
What dread hand & what dread feet?

What the hammer? what the chain?
In what furnace was thy brain?
What the anvil? what the grasp
Dare its deadly terrors clasp?

When the stars threw down their spears,
And water'd heaven with their tears,
Did he smile his work to see?
Did he who made the Lamb make thee?

Tyger! Tyger! burning bright
In the forests of the night,
What immortal hand or eye
Dare frame thy fearful symmetry?

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

• "O Tygre"
In Augusto de Campos
Viva Vaia (Poesia 1949-1979)
Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1979
• "O Tygre"
In José Paulo Paes
Gregos & Baianos - Ensaios
Ed. Brasiliense, São Paulo, 1985