Número 82

São Paulo, quarta-feira, 18 de agosto de 2004 

«Os barcos vão e os mares ficam.» (Nauro Machado)
 

H. Dobal, foto reproduzida do Jornal de Poesia
H. Dobal - janeiro, 2001




Caros amigos,

O poeta H. Dobal — ou, no registro civil, Hindemburgo Dobal Teixeira —
nasceu em Teresina, em 1927. Advogado, foi funcionário do Ministério da Fazenda. O poeta publicou um bom punhado de livros, mas os críticos consideram sua primeira obra, O Tempo Conseqüente, de 1966, um dos momentos mais marcantes de seu trabalho.

Sobre esse livro, Manuel Bandeira escreveu: “Só mesmo um poeta ecumênico como Dobal podia fixar sua província com expressão tão exata, a um tempo tão fresca e tão seca, despojada de quaisquer sentimentalidade, mas rica do sentimento profundo visceral da terra”.


De fato, o que chama a atenção na poesia de H. Dobal é essa fina emoção lírica construída, paradoxalmente, com um discurso árido, firme, substantivo. Mas não se pense que o termo árido, aí, tem a ver apenas com o agreste da região natal do poeta. Existir é árido, em qualquer quadrante, em qualquer estação. É o poeta quem avisa, de olho na paisagem de Brasília:

Dói o verão:
esta pele seca
estirada
sobre os ministérios vazios.

A poesia de H. Dobal é como um grande pássaro que estende as asas sobre o campo e a cidade. Vai das cabeças d'água do rio Surubim e do chão das vacas e ovelhas até o mármore morto dos viadutos. Uma poesia que se debruça sobre o esporte amargo de viver e sabe que o destino sempre leva vantagem. E a cinza das roças é a mesma que ameaça os monumentos.

Estranho — e injusto — é que um poeta como H. Dobal tenha uma obra praticamente desconhecida. Não há livros do poeta no mercado. Descobri que a Livraria Corisco, de Teresina, publicou em 1997 uma poesia completa de Dobal. Mas nem a própria editora tem mais essa obra. Ainda há, parece, uma edição de O Tempo Conseqüente, também da Corisco. Só que a edição não é distribuída nacionalmente. Mandei um e-mail para a editora, na tentativa de obter informações mais precisas. Não obtive resposta.

Quem me chamou a atenção para o trabalho de H. Dobal foi o poeta Donizete Galvão. Depois que Galvão me deu a dica, li na internet alguns poemas de Dobal e fiquei impressionado. Em seguida, observei que Manuel Bandeira, em 1964, já o havia incluído em sua Antologia de Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos. Bandeira foi também o autor do prefácio de O Tempo Conseqüente.

Um abraço,

Carlos Machado

 

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Para a realização deste boletim, contei com a ajuda de Soares Feitosa, poeta e editor do Jornal de Poesia, publicação pioneira em divulgação literária na internet. Feitosa gentilmente permitiu que eu reproduzisse uma foto do JP. A ele os nossos agradecimentos.

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MAIS AUGUSTO DOS ANJOS

Alguns leitores do poesia.net, fãs de Augusto dos Anjos, fizeram
críticas ao boletim n. 80, que pôs em foco o poeta paraibano.
Entre outras coisas, dizem que foram poucos os poemas citados.
Em mais uma homenagem a Augusto e aos augustistas, fiz duas
modificações no site. Primeiro, incluí na seção Links um atalho
que aponta para a Biblioteca Virtual de Literatura, onde estão
todos os poemas do autor de "As Cismas do Destino". Depois,
adicionei mais poemas à página do poeta (que, portanto, fica
diferente da que circulou como boletim).

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Vejam também sobre H. Dobal o boletim:
- poesia.net 249

No vôo cortante da tarde

H. Dobal

 


O VÔO

Dói o domingo
no ninho dos tédios.

Dói o verão:
esta pele seca
estirada
sobre os ministérios vazios.

Dói o clube
dos domingos.
Dói o rito
dos domingos:
o amargo esporte
de viver.
O amargo esporte
de esquecer.

Dói a divisão da vida:
o pão subtraído,
o peixe poluído,
a paz envenenada.

Dói o vôo cortante desta tarde.



O DESTINO

No campo do azul vem o verão
plantar as suas nuvens.

Na cidade imperfeita
vem o dia
plantar a sua luz:
No mármore morto
dos viadutos.
No verde novo
depois das chuvas.
Na cinza que ameaça os monumentos.

Num lance de dados se planta o destino.
O destino: a previsão da náusea dos espaços.
O destino
destruidor de nuvens.
O destino
levando vantagem.



TRANSEUNTE

Transeunte numa cidade sem ruas,
é apenas um homem, apenas uma mulher.
A vida pesada cai sobre
os seus ombros cansados. Levados
de uma incerteza a outra incerteza,
de uma angústia a outra angústia,
no amargo sonho desta vida
pedindo ao verão o refrigério das sombras.

 

CAMPO MAIOR

Ai campos do verde plano
todo alagado de carnaúbas.
Ai planos dos tabuleiros
tão transformados tão de repente
num vasto verde num plano
campo de flores e de babugem.

Ai rios breves preparados
de noite e nuvem. Ai rios breves
amanhecidos na várzea longa,
cabeças d'água do Surubim
no chão parado dos animais,
no chão das vacas e das ovelhas.

Ai campos de criar. Fazendas
de minha avó onde outrora
havia banhos de leite. Ai lendas
tramadas pelo inverno. Ai latifúndios.



HOMO

Sua razão de vida o homem vê minguando
a cada dia. Mas duro recomeça
como se o tempo lhe sobrasse. E vagaroso
não conta as eras que se extinguem.
Nem conta a solidão dos dias claros
se desdobrando iguais como esquecidos
de mudar. Nem a distância
que o grito não transpõe, a passagem da vida
cumprida só em mínimos desejos.
Sua lástima no piar das nambus, sóbrio
se esquiva às armadilhas da tarde.
A incerteza nos paióis, o chão batido
em que levanta a casa, o amor
como a água das cabaças.
Lavrador do milho e do feijão, sua frugal colheita
em gleba alheia. Passa-lhe a vida,
e queima o céu com a cinza de suas roças.


A MORTE

A morte aparece
sem fazer ruído.

Senta-se num canto
fica indiferente
com seu ar de calma
absoluta.
Mira longamente
o quarto o retrato
a cama os remédios
postos entre os livros
sobre a mesa escura.

Depois se levanta
sem nenhuma pressa
sem impaciência
retorna ao seu mundo
a morte, de gestos
claros e serenos.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

H. Dobal
In Obra Completa - Poesia
Corisco/PMT, Teresina, 1997