Número 86

São Paulo, quarta-feira, 15 de setembro de 2004 

«Naquela tarde quebrada/ Contra o meu ouvido atento /Eu soube que a missão das folhas / É definir o vento.» (Ruy Belo)
 


Sergio Cohn


Caros amigos,

O paulistano Sergio Cohn sabe que o poeta, em sua aventura criativa, está sempre se arriscando em país estrangeiro. Por isso se propõe a visitar o território da poesia "pelo puro prazer da paisagem". Sabe também que lá, como estrangeiro, não lhe é permitido menos que o esplendor.

Essa parece ser a profissão de fé desse jovem poeta, sugerida no poema "Discurso". Nascido em 1974, Cohn desde cedo se envolveu com a literatura. Com amigos, criou uma revista de poesia, a Azougue, que está comemorando uma década este ano.

Além de revista, Azougue é também o nome da editora independente criada por Sergio. Sediada no Rio de Janeiro, onde mora o poeta, a editora tem livros sobre cinema, teatro e, principalmente, poesia.

Sergio Cohn tem dois livros publicados: Lábio dos Afogados (Nankin, São Paulo, 1999) e Horizonte de Eventos (Azougue, Rio de Janeiro, 2002). Os três poemas ao lado foram extraídos desse último livro.

Um abração, e até a próxima.

Carlos Machado

 

                     • • •

OUTRAS PALAVRAS

Sempre que possível, tenho incluído aqui, no lado esquerdo da página, observações não diretamente associadas ao poeta em foco. Só que às vezes quero transcrever um poema, citar um texto mais longo, e esta faixa é muito estreita.

Criei, então, o espaço Outras Palavras, em outro lugar — no site. Darei um toque aqui sempre que pintar algo novo lá. Como primeira inserção nesse espaço, fiz o registro do lançamento, este mês, do livro Amálgama, poesia reunida do baiano Roberval Pereyr.

Para visitar o Outras Palavras, clique aqui.

Por trás da cortina

Sergio Cohn

 


DISCURSO

tecer o fio de Ariadne
sem ao menos a intenção
de um dia retornar

tecer pelo exercício
narcísico
de se conhecer e doar

ir, perscrutar
para além do verde
opaco da próxima curva

sabendo cada passo
apenas eco
do anterior

ir
pelo puro prazer
da paisagem

ao estrangeiro

é permitido
o esplendor
 

FLOR BRANCA

No cimento cru da varanda
A flor branca
Que ia ofertar a Iemanjá.
Agora não mais flor
Nem oferenda,
Simples objeto
entregue ao sol.
O talo descuidadamente cortado,
As pétalas amarelecidas.
Penso na inutilidade daquele corpo,
Na fragilidade do que floresce.
 

MNEMO

Há um resíduo de futuro
no vento, fotograma ante-
cipado, montagem de fragmentos
induzindo à cena. Como
aquela árvore se curvando com-
placente aos invisíveis pesos,
como o mormaço
predizendo chuva. Repito,
há um canto anterior
a qualquer canto, uma réstia,
um eco primeiro, como um som
que ressoa por dentro de cada
palavra, como todo gesto se
desenha e apaga, então
novamente. Há o revés,
o diáfano, o termo, beleza
posta e perdida, o desen-
cadeamento, assim
como a sede do vapor
por uma forma, assim
como tudo retorna
à imaginação
por trás da cortina
da memória.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

Sergio Cohn
In Horizonte de Eventos
Azougue Editorial, Rio de Janeiro, 2002