Número 87

São Paulo, quarta-feira, 22 de setembro de 2004 

«A beleza, é em nós que ela existe.» (Manuel Bandeira)
 


Eduardo Lizalde



Caros amigos,

O mexicano Eduardo Lizalde, nascido em 1929, é um dos grandes poetas contemporâneos de seu país. Com uma longa trajetória poética, Lizalde na juventude participou de um movimento chamado "poeticismo", considerado formalista e esteticista. São “poeticistas” os poemas que ele escreveu entre 1949 e 1955. Depois, Lizalde publicou severa autocrítica e passou a produzir uma poesia de denúncia social. Essa nova produção corresponde ao período em que o poeta se tornou militante do Partido Comunista Mexicano.

Os críticos são quase unânimes em afirmar que o melhor da poesia lizaldeana não se encontra nem no poeticismo nem na poesia engajada. Em nova virada, o poeta se afastou do Partido Comunista, e sua poesia mais expressiva começa a se mostrar a partir de 1966, com o livro Cada Cosa es Babel.

A obra que realmente inscreveu Lizalde entre os grandes da poesia mexicana foi El Tigre en la Casa, de 1970. "É impossível não sentir a grandeza da descrição do tigre, animal plástico que representa o ser humano em suas várias facetas e relações; é impossível não reconhecer o impacto de seus poemas sobre o ódio, ódio que constitui a única prova da existência de alguma coisa", escreve Plinio Junqueira Smith, professor de filosofia que traduziu para o português uma antologia de Eduardo Lizalde, ainda inédita.

As traduções ao lado fazem parte dessa antologia. Foi também Plinio Junqueira Smith quem nos apresentou o poeta e nos forneceu informações biográficas sobre o criador do tigre. Registro aqui, portanto, nosso agradecimento a Plinio pelo fornecimento de todo o material de base para este boletim. Fiquem também registrados os votos de que que essa antologia logo esteja à disposição dos leitores de poesia.

Um abraço,

Carlos Machado


                       •••

 


NÓBREGA É BREGA


O que o jesuíta português Manuel da Nóbrega (1517-1570), que repousa lá no início dos livros de História, tem a ver com a denominação de coisas cafonas, de mau gosto? Tudo.

Esta história não está associada a poetas e poesia, mas à língua brasileira. Você faz idéia de onde veio o adjetivo e substantivo brega, usado para indicar algo deselegante ou de mau gosto?

Se não sabe, eu conto. E, ao contar, me sinto uma espécie de testemunha ocular e auditiva do nascimento dessa palavra. Em Salvador, no final dos anos 60 e início dos 70, a principal ou mais conhecida área de meretrício da cidade ficava na rua Manuel da Nóbrega.

Era uma via colonial que descia o morro, próxima à famosa praça Castro Alves. Na entrada dessa rua havia uma daquelas placas antigas,
esmaltadas, com o nome do jesuíta. Com o tempo, o esmalte se desgastara, ficando apenas "brega". Esse resto de placa passou a identificar o local. Brega tornou-se
um sinônimo para zona de meretrício. Logo, expressões como "isso é música que toca no brega" foram abreviadas para "isso é música brega".

A história, tenho certeza, é essa. Posso afirmar: vi a placa da rua Manuel da Nóbrega carcomida, reduzida a "brega". Só não faço idéia de como a palavra, estritamente soteropolitana, se espalhou pelo Brasil inteiro. Outros baianos da
época podem atestar esta história. No final dos anos 70, o termo "brega" já era utilizado largamente no Brasil, em especial para indicar certo estilo de música.

Se você consultar o Dicionário Aurélio, vai verificar que brega, substantivo, é sinônimo de zona de meretrício. Isso confirma uma parte da história que contei. O Dicionário Houaiss vai um pouco além, porque sugere algo sobre a origem da palavra. Primeiro, indica que é um termo baiano, e não nordestino em geral, como diz o Aurélio. Depois, diz: "Freqüentemente, a origem desta [acepção] tem sido atribuída a um antropônimo." O antropônimo, claro, é Manuel da Nóbrega.

Com essa o venerando padre não contava.

 

Hay un tigre en la casa

Eduardo Lizalde

 


                    Tradução: Plinio Junqueira Smith


EPITÁFIO

Somente duas coisas quero, amigos,
uma: morrer,
e duas: que ninguém se lembre de mim
senão por tudo aquilo que esqueci.


O TIGRE

Há um tigre em casa
que dilacera por dentro aquele que o olha.
E somente tem garras para aquele que o espia,
e somente pode ferir por dentro,
e é enorme:
maior e mais pesado
que outros gatos gordos
e carniceiros pestíferos
de sua espécie,
e perde a cabeça com facilidade,
fareja o sangue mesmo através do vidro,
percebe o medo até da cozinha
e apesar das portas mais robustas.

Costuma crescer de noite:
coloca sua cabeça de tiranossauro
em uma cama
e o focinho fica pendurado
para lá das colchas.
Seu dorso, então, se aperta no corredor
de uma parede à outra,
e somente alcanço o banheiro rastejando, contra o teto,
como que através de um túnel
de lodo e mel.

Não olho nunca a colméia solar,
os negros favos do crime
de seus olhos,
os crisóis da saliva envenenada
de suas presas.

Nem sequer o cheiro,
para que não me mate.

Mas sei claramente
que há um imenso tigre encerrado
em tudo isso.


GRANDE É O ÓDIO

Grande e dourado, amigos, é o ódio.
Tudo o que é grande e dourado
vem do ódio.
O tempo é ódio.

Dizem que Deus se odiava em ato,
que se odiava com a força
dos infinitos leões azuis
do cosmos;
que se odiava
para existir.

Nascem, do ódio, mundos,
óleos perfeitíssimos, revoluções,
tabacos excelentes.

Quando alguém sonha que nos odeia, apenas,
dentro do sonho de uma pessoa que nos ama,
já vivemos no ódio perfeito.

Ninguém vacila, como no amor,
na hora do ódio.

O ódio é a única prova indubitável
da existência.

                    De El Tigre en la Casa (1970)


REVOLUÇÃO, ESTENDO A MÃO

Revolução, estendo a mão
e, às vezes, tu a mordes.
Sou individualista,
mas o mundo não é belo.
Somente o idiota, o louco e o canalha
pensam que o mundo é um jardim
onde floresce uma esmeralda
com sabor de pêssego.
Olha, estou contigo, a sério.
Como poderão ferir-te,
pedra secular,
umas poucas palavras minhas?
Nem os tiranos mais abjetos caíram,
jamais, pela literatura.
Escuta: come um pouco, tranqüila,
da minha mão.
Não é veneno esta pobre palavra deprimente,
de raposa enferma,
que te dou.

                    De La Zorra Enferma  (1975)



EPITAFIO

Sólo dos cosas quiero, amigos,
una: morir,
y dos: que nadie me recuerde
sino por todo aquello que olvidé.


EL TIGRE

Hay un tigre en la casa
que desgarra por dentro al que lo mira.
Y sólo tiene zarpas para el que lo espía,
y sólo puede herir por dentro,
y es enorme:
más largo y más pesado
que otros gatos gordos
y carniceros pestíferos
de su especie,
y pierde la cabeza con facilidad,
huele la sangre aun a través del vidrio,
percibe el miedo desde la cocina
y a pesar de las puertas más robustas.

Suele crecer de noche:
coloca su cabeza de tiranosaurio
en una cama
y el hocico le cuelga
más allá de las colchas.
Su lomo, entonces, se aprieta en el pasillo,
de muro a muro,
y sólo alcanzo el baño a rastras, contra el techo,
como a través de un túnel
de lodo y miel.

No miro nunca la colmena solar,
los renegridos panales del crimen
de sus ojos,
los crisoles de saliva emponzoñada
de sus fauces.

Ni siquiera lo huelo,
para que no me mate.

Pero sé claramente
que hay un inmenso tigre encerrado
en todo esto.


GRANDE ES EL ODIO

Grande y dorado, amigos, es el odio
Todo lo grande y lo dorado
viene del odio.
El tiempo es odio.

Dicen que Dios se odiaba en acto,
que se odiaba con fuerza
de los infinitos leones azules
del cosmos;
que se odiaba
para existir.

Nacen del odio, mundos,
óleos perfectísimos, revoluciones,
tabacos excelentes.

Cuando alguien sueña que nos odia, apenas,
dentro del sueño que alguien nos ama,
ya vivimos el odio perfecto

Nadie vacila, como el amor,
a la hora del odio.

El odio es la sola prueba indudable
de la existencia.


                    De El Tigre en la Casa (1970)


REVOLUCIÓN, TIENDO LA MANO...

Revolución, tiendo la mano
y a veces me la muerdes.
Soy individualista,
pero el mundo no es bello.
Sólo el idiota, el loco y el canalla
piensan que el mundo es un jardín
donde florece una esmeralda
con sabor a durazno.
Mira, yo estoy contigo, en serio.
¿Cómo han de herirte a ti,
piedra del siglo,
unas palabras mías?
Ni los tiranos más abyectos han caído,
jamás, por la literatura.
Escucha: come un poco, tranquila,
de mi mano.
No es veneno esta pobre palabra deprimente,
de zorra enferma,
que te doy.

                    De La Zorra Enferma  (1975)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2004

Eduardo Lizalde
In O Tigre em Casa e a Caça do Tigre (inédito)
Tradução, seleção e introdução de
Plinio Junqueira Smith