Número 94

São Paulo, quarta-feira, 10 de novembro de 2004 

«O mistério/ dos rios/ é que eles passam/ por dentro/ de nós/ e só depois/ deságuam no mar.» (Francisco Carvalho)
 


Álvares de Azevedo


Caros amigos,


O paulistano Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852) é certamente o poeta romântico brasileiro com mais aguçado senso de humor. Embora sua poesia apresente as principais características de sua escola literária — por exemplo, subjetivismo, melancolia, amor e morte —, Azevedo mostra uma nota dissonante quando escreve versos marcados pelo sarcasmo.


Nesse aspecto, seus versos revelam traços que os aproximam da poesia moderna, tanto pela incorporação da ironia como pela capacidade de descer das idealizações romanescas e trabalhar com cenas pedestres do cotidiano.

Basicamente, o que se aprende na escola sobre Álvares de Azevedo não vai além do nome do único livro que ele organizou em vida, a Lira dos Vinte Anos, e seu poema "Se eu morresse amanhã". Bonito e pungente, esse poema, escrito às vésperas de sua morte, tornou-se tragicamente representativo do sofrimento pessoal do poeta, vitimado pela tuberculose aos 20 anos.

A maioria de nós não leu na escola (e talvez nem depois) os textos de Álvares de Azevedo transcritos ao lado. No poema "Meu Anjo", confira como o poeta sabe contrapor a realidade à idealização da mulher amada. O poema faz parte de uma suíte chamada "Spleen e Charutos". Esse título, em si, já define uma nota dissonante, misturando a melancolia byroniana com a prosaica fumaça de tabaco.

Em "Namoro a Cavalo", Azevedo mostra um jovem apaixonado que se revela simplesmente ridículo. A hilariante "É ela! É ela! É ela! É ela" apresenta outro momento de humor que desafina o coro dos corações românticos.

Carlos Machado

 

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Na fumaça de um charuto

Álvares de Azevedo

 



MEU ANJO

Meu anjo tem o encanto, a maravilha
Da espontânea canção dos passarinhos;
Tem os seios tão alvos, tão macios
Como o pêlo sedoso dos arminhos.

Triste de noite na janela a vejo
E de seus lábios o gemido escuto
É leve a criatura vaporosa
Como a frouxa fumaça de um charuto.

Parece até que sobre a fronte angélica
Um anjo lhe depôs coroa e nimbo...
Formosa a vejo assim entre meus sonhos
Mais bela no vapor do meu cachimbo.

Como o vinho espanhol, um beijo dela
Entorna ao sangue a luz do paraíso.
Dá morte num desdém, num beijo vida,
E celestes desmaios num sorriso!

Mas quis a minha sina que seu peito
Não batesse por mim nem um minuto,
E que ela fosse leviana e bela
Como a leve fumaça de um charuto!




NAMORO A CAVALO

Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.

Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
À minha namorada na janela...

Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,
Algum verso bonito... mas furtado.

Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento...
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia — em casamento.

Ontem tinha chovido... que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...

Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente,
Fui mesmo sujo ver a namorada...

Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...

O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...

Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.

Circunstância agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!...




É ELA! É ELA! É ELA! É ELA!

É ela! É ela! murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou
é ela!
Eu a vi... minha fada aérea e pura

A minha lavadeira na janela!
Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! Que profundo sono!...
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso...
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
Oh! de certo... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela... que amanhã de certo
Ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
É ela! É ela!
repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta...
Oh! Meu Deus! Era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas
Se achou-a assim mais bela
eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É ela! É ela! meu amor, minh'alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É ela! É ela!
murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou
é ela!

 

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Carlos Machado, 2004

Álvares de Azevedo
In Lira dos Vinte Anos
1853