Número 106 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 2 de março de 2005 

«Mesmo abstêmio, o poeta costuma ser um anjo bêbado.» (Paulo Mendes Campos)
 


Prisca Agustoni



Caros amigos,


A jovem suíço-italiana Prisca Agustoni é uma escritora de difícil classificação. Primeiro, porque ela escreve, com igual desenvoltura, em italiano
sua lingua mater , em português e em espanhol. Depois, porque pratica um lirismo que também não se rende a catalogações automáticas. Nascida em Lugano, na Suíça italiana, ela morou em Genebra, onde se formou em letras hispânicas e  filosofia. Vive em Minas Gerais desde 2002, onde faz o doutorado em letras pela PUC-MG.

Neste boletim, incluo trabalhos de dois livros da poeta: Inventario di Voci/ Inventário de Vozes (2001) e Sorelle di Fieno / Irmãs de Feno (2002), ambos escritos em italiano e em português, o segundo com tradução do poeta juiz-forano Edimilson de Almeida Pereira. Prisca Agustoni tem ainda outro livro, Días Emigrantes e Outros Poemas (2004), mas neste os textos estão apenas em espanhol.

"Minha palavra / é explosão de argila" diz Prisca no poema "Vozes". De fato, sua poesia parece combinar essa consciência do barro e dos "homens que caçam a origem". Silêncios, esperas, distâncias. Há uma certa nostalgia plasmada em versos limpos, onde "cada palavra tem seu espaço".

Prisca elimina a separação entre o prosaico e o poético; entre o chão do dia-a-dia e a esfera do sonho. Tudo se junta na carne suave desses poemas. Para a professora Maria José Somerlate Barbosa, os poemas de Inventário "apresentam, de uma forma ou de outra, uma cartografia de desejos representada por objetos, emoções e impressões cuidadosamente escolhidos".

Em Irmãs de Feno, a poeta toma como ponto de partida um movimento de migração interna na Suíça. São moças do cantão italiano (Ticino) que no início do século XX passam para o lado alemão do país. Vão trabalhar como tecelãs em internatos dirigidos por freiras. É a passagem do mundo rural para o industrial e
num processo mais simbólico da língua italiana para o alemão. Com seus filtros poéticos, Prisca Agustoni dá voz a essas meninas do passado. Vejam ao lado dois poemas de Irmãs do Feno, "Fiar a Voz" e "Réquiem".


Um abraço, e até a próxima,


Carlos Machado





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HÍDRIAS, NOVO LIVRO DE
DORA FERREIRA DA SILVA

A poeta Dora Ferreira da Silva (poesia.net n. 76) lançou nesta terça-feira em São Paulo uma nova coletânea de poemas, Hídrias. Segundo a apresentação do livro, cada poema evoca um mito grego. Hídrias, esclarece o texto, "são recipientes que contêm água, elemento sagrado de pureza e purificação".
A obra sai pela Editora Odysseus:   tel. (11) 3816-0835; site www.odysseus.com.br.


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LITERATURA EM JEQUIÉ-BA

Esta dica é para quem mora na Bahia ou vai estar por lá na região de Jequié, na semana de 6 a 11 de março. A grande pedida literária do período é o Encontro Nacional de Leitura e Literatura Infanto-Juvenil da UESB (Universidade do Sudoeste da Bahia). O evento vai ter de tudo: palestras, exibição de filmes, mesas-redondas, oficinas, minicursos, lançamentos de livros, shows e apresentações culturais. Estão confirmadas as presenças de dois poetas baianos já enfocados aqui no poesia.net: Myriam Fraga e Ruy Espinheira Filho. Outros pontos altos vão ser os shows dos cantores Elomar e Geraldo Azevedo. Mais informações sobre o encontro pelo telefone (73) 526-8619, ou pelos e-mails estale@uesb.br e estacaoleitura@yahoo.com.br.


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60 ANOS SEM MÁRIO

Na última sexta-feira, 25 de fevereiro, completaram-se 60 anos da morte do poeta, romancista, músico, crítico de arte, ensaísta, musicólogo e agitador cultural modernista Mário de Andrade (1893-1945). Não bastasse tudo isso, foi também um dedicado professor, um homem imbuído de missão civilizatória. Os milhares de cartas que trocou com intelectuais de todo o Brasil mostram bem esse lado do Mário civilizador. Nesta pequena nota fica registrada toda a nossa admiração pela enorme figura de Mário de Andrade. Sobre ele Drummond escreveu:

O meu amigo era tão
de tal modo extraordinário,
cabia numa só carta,
esperava-me na esquina,
e já um poste depois
ia descendo o Amazonas,
tinha coletes de música,
entre cantares de amigo
pairava na renda fina
dos Sete Saltos (...)


(Carlos Drummond de Andrade, "Mário de Andrade Desce aos Infernos", in A Rosa do Povo, 1945)

 




 

Explosão de argila

Prisca Agustoni

 




William Schneider - Antique Lantern
William Schneider, Lanterna antiga



FESTA

Cada palavra tem seu espaço.

Mesmo o silêncio
tem espessura de homem.

Os tambores escutam
em surdina
a entrega do corpo.

Eis o cenário
onde a palavra se renova

pesando eternidade.


FESTA

Ogni parola ha il suo spazio.

Anche il silenzio
ha spessore d'uomo.

I tamburi ascoltano
in sordina
la resa del corpo.

È lo scenario
dove la parola si rinnova

pesando eternità.



William Schneider - Pirate Queen
William Schneider, Rainha pirata



RETORNO

Dessas distâncias
eu falo.

Digo céus digo homens
que caçam a origem.

Não voltarei
dessa plena distância.

Tenho a consistência do silêncio
primeiro.
Pois espero a floração das chegadas.

Parti para sempre,
com as histórias
órfãs de todos os invernos.


RITORNO

Da questa lontananza
io parlo.

Parlo cieli parlo uomini
che cacciano l'inizio.

Non ritornerò
da questa colma distanza.

Ho la consistenza del silenzio
primigenio.
Quindi aspetto la fioritura degli arrivi.

Sono partita per sempre,
assieme alle storie
dimentiche di tutti gli inverni.



William Schneider - Reflection
William Schneider, Reflexão



VOZES

Tempo e espaço
não me limitam.
A procura
me avizinha ao mundo.

A moça espera
quem nunca partiu,
depois abraça
o que nunca chegou.

Minha palavra
é explosão de argila.


VOCI

Tempo e spazio
non mi limitano.
Il cercare
mi avvicina al mondo.

La ragazza aspetta
chi non è mai partito,
poi abbraccia
colui che non è mai arrivato.

La mia parola
à esplosione d'argilla.


          De Inventário di Voci / Inventário de Vozes (2001)



William Schneider - Sweet sixteen
William Schneider, Doces dezesseis



FIAR A VOZ

Elvezia gosta de cantar.
Mas aqui não vale
a prataria lírica:
as papoulas são altas
e as persianas
continuam
herméticas


FILARE LA VOCE

A Elvezia piace cantare.
Ma qui non vale
l'argenteria lirica:
i papaveri sono alti
e le persiane
continuano
ermetiche.



William Schneider - Flamenco
William Schneider, Flamenco



RÉQUIEM

Os botões são a minha paixão.

No convento
perfumam ambíguos como as rosas.
Quando posso escondo
alguns
para remendar
uma canção de ninar,

ou contar os dias
que faltam
para sair daqui.


REQUIEM

I bottoni sono la mia passione.

Nel convento
profumano ambigui come le rose.
Quando posso ne nascondo
alcuni
per rammendare
uma ninnananna,

o contare i giorni
che rimangono
per uscire da qui.


          De Sorelle di Fieno/Irmãs de Feno (2002)

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

Prisca Agustoni
• "Festa", "Retorno", "Vozes"
   In Inventario di Voci / Inventário de Vozes
   Mazza Edições, Belo Horizonte, 2001
• "Fiar a Voz", "Réquiem"
   In Sorelle di Fieno / Irmãs de Feno
   Tradução de Edimilson de Almeida Pereira
   Mazza Edições, Belo Horizonte, 2002

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Imagens: quadros do pintor americano William Schneider (1945-)