Número 108 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 2005

«E se Deus é canhoto/ e criou com a mão esquerda?/ Isso explica, talvez, as coisas deste mundo.» (Drummond)
 


Ricardo Aleixo


Caros amigos,


Nascido em 1960, o belo-horizontino Ricardo Aleixo é um homem de sete instrumentos. Poeta, músico, produtor cultural e artista plástico, ele já lançou cinco livros de poesia: Festim (1992), A Roda do Mundo (em parceria com Edimilson de Almeida Pereira, 1996), Quem Faz o Quê? (1999), Trívio (2002) e Máquina Zero (2004).

Com sua vocação multimídia, Ricardo Aleixo organiza exposições e espetáculos e ainda integra, como compositor e performer, a Sociedade Lira Eletrônica Black Maria e a Cia. Será Quê? Apesar de atacar em frentes artísticas tão diversas, ele não esconde que sua grande paixão é mesmo a poesia.

Discípulo confesso dos poetas concretos, especialmente de Augusto de Campos, Aleixo é também um artista gráfico. Seus dois livros mais recentes, Trívio e Máquina Zero, contêm primorosa programação visual, também urdida pelo poeta.  

Para este boletim, escolhi exatamente poemas desses  dois títulos. Em "Paupéria Revisitada", o primeiro texto ao lado, o poeta usa um pouco da verve herdada de Gregório de Mattos para discutir o lugar do poeta "em nosso belo quadro social", como diria o sarcástico Raul Seixas. (Não estranhem a aproximação com Gregório de Mattos: Aleixo é mineiro, mas em Máquina Zero declara filiação ao baiano Boca do Inferno.)

Em "Rondó da Ronda Noturna", é o poeta concreto quem comparece, colocando o dedo em duas de nossas terríveis mazelas: a violência policial e o preconceito contra negros. O poema foi escrito após o conhecido episódio da Favela Naval — em Diadema, no ABC Paulista, em 1997 —, quando policiais agridem um rapaz negro com tapas, empurrões, pontapés e palavrões e em seguida o matam. O "Rondó" também aparece na antologia Paixão por São Paulo, organizada em 2004 pelo poeta Luiz Roberto Guedes para marcar os 450 anos da cidade.

O poema "Numa Festa" revela outra faceta do autor, atento observador de gentes e palavras. Fecho a amostra com a "Loa da Menina Deusa", que traz um Ricardo Aleixo em diapasão lírico. Faltam ainda outras dimensões do poeta, como a do criador de orikis, gênero poético oral da cultura iorubá.

Atualmente, Ricardo Aleixo anda envolvido com a organização da segunda Bienal Internacional de Poesia de Belo Horizonte BHZIP, prevista para setembro deste ano. Para acompanhar a preparação da BHZIP e ter mais informações sobre Ricardo Aleixo, dê uma passada no blog do poeta: http://jaguadarte.zip.net


Um grande abraço,

Carlos Machado

 

                     • • •

Máquina zero

Ricardo Aleixo

 

 

PAUPÉRIA REVISITADA

Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
na companhia das traças
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.

 

 

rondó da ronda noturna


 

q      uanto +

p      obre +

n      egro

q      uanto +

n      egro +

a      lvo

q      uanto +

a      lvo +

m     orto

q      uanto +

m     orto +

u      m

 

 



NUMA FESTA

Creio ter ouvido certo.
Alguém do grupo junto

à janela pronunciou,
enquanto eu observava,

apenas por fastio,
o deslizar de um peixe

amarelo no aquário, sozinho,
a palavra sodomita.

Nunca a ouvira antes.
Pareceu-me grave — naquele

lugar,
naquele instante e nos dias

seguintes —,
bíblica.


LOA DA MENINA DEUSA

já perto do poente
o cabelo ornado
com invisíveis fios
de ouro
a menina uma
putinha da areia uma
menina deusa
qualquer
inventa a um
simples meneio
dos dedos
um outro sol
e some
rápida
reconvertida
em água
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

Ricardo Aleixo
• "Rondó da Ronda Noturna"; "Numa Festa"
   In Trívio
   Scriptum Livros, Belo Horizonte, 2001
• "Paupéria Revisitada"
   In Máquina Zero
   Scriptum Livros, Belo Horizonte, 2004