Número 126 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 20 de julho de 2005

«mas ouça: na lousa da noite/ os grilos vão deixando reticências» (Claudia Roquette-Pinto)
 


Ronaldo Costa Fernandes


Caros amigos,

Romancista, poeta e ensaísta, Ronaldo Costa Fernandes (1952-) nasceu no Maranhão, criou-se no Rio de Janeiro e depois fincou raízes em Brasília. Morou nove anos na Venezuela, onde dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. Foi também coordenador da Funarte em Brasília, até 2003.

Costa Fernandes é doutor em Literatura pela Universidade de Brasília e já ganhou vários prêmios literários, entre os quais o Casa de las Américas, com seu quarto romance, O Morto Solidário, de 1998. Como poeta, ele estreou com um livro chamado Urbe, em 1975, hoje renegado. Assim, seu début oficial ficou sendo o volume Estrangeiro, publicado 22 anos depois. Vieram em seguida Terratreme (1998), Andarilho (2000) e Eterno Passageiro (2004).

Para o também poeta e ensaísta Antonio Carlos Secchin, a poesia de Ronaldo Costa Fernandes tem como um de seus traços mais significativos "a imagem de um poeta em trânsito". É verdade. Essa mobilidade se mostra até nos títulos dos livros, que são perfeitas variações sobre o mesmo tema: o poeta é andarilho, estrangeiro, eterno passageiro.

E qual a bagagem transportada por esse viajante? Na análise do contista e romancista Hugo Almeida, o poeta carrega o desassossego dos viventes nestes tempos marcados pelo "demônio do silêncio" e pela "imensidão do medo" como avisam seus próprios versos.

Buscar o humano, inquirir, tentar descobrir, no rosto do dia banal, a senha secreta de algo maravilhoso ou terrível. O desassossego dessa procura é talvez o motor que dá energias ao andarilho. Não há dúvida: é essa urgência de perguntar, mesmo sem esperar resposta, que preside todos os textos escolhidos para esse boletim.

Embarquemos, portanto, na  viagem desse eterno passageiro.

Um abraço,

Carlos Machado



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O eterno passageiro

Ronaldo Costa Fernandes

 



O TEMPO

O tempo e sua matéria
a máquina dos meus humores
tão rica e mineral
enquanto lá for
a sonata dos desatinos
orquestra o boi que se estende no varal.

O tempo e sua miséria,
deus negro que não encontra o sono.

O tempo e sua morfologia
feita de nada e de tudo
como alguém que anda
com os calcanhares para a frente.

O tempo e sua bílis negra,
atrabiliário e perverso,
monstro do Loch Ness,
ó profundeza feita de vazio.

O tempo e sua caixa de música
o lugar dos sons prisioneiro,
o que se escuta é o silêncio das horas
lambendo o ar rarefeito.

O tempo — animal que não envelhece,
nós é que passamos por ele
como alguém que acena de um ônibus
para a imobilidade saudosa
de um bar à beira da estrada.



INDÚSTRIA DO AMARGO

A indústria do amargo desassossego,
a patente do medo, a geringonça

movendo as vísceras dentadas,
a fábrica de desacertos mostra o intestino,

manufatura de mercadoria e dejeto,
o lodo e o pêndulo como destino.

Eis o lodo, barro inútil para fazer gente,
massa fecunda para fabricar o desengano.

Agora a outra prensa do nada:
o pêndulo: que é o mesmo e seu avesso,
ora num lugar, ora em outro,
sem nunca sair de onde está;

preso de si, são dois em um,
um que se faz de dois,
para iludir a salmoura da matéria.

 

A IMAGINAÇÃO DOS BASTARDOS

Como serão os anjos na velhice?
Aqui onde a queda é ascensão
não duvido da existência
do hálito de Deus.
Somos as raízes mortas
cheirando a ferro,
respirando o incenso do monóxido de carbono.
As putas recolhem entre as pernas
a espécie sutil de réptil
seco da Johntex:
o pânico feito de elástico, músculo e noite.

                    (de Eterno Passageiro, 2004)



O ROSTO

Na sombra, os rostos têm todas as feições
porque nela cabe a imaginação
cuja cara é uma deusa sem rosto.

Por isso te vejo em todas as sombras —
                        sombras do quarto e da noite.
Por isso estás também
                        em minha mente
                        que vive em permanente sombra.

                    (de Estrangeiro, 1997)



SOLILÓQUIO

Com quantos ferros
se faz uma manhã?
Pernas mecânicas,
bocas mecânicas,
o mundo mecânico dos elevadores
                     e da depressão.

Os objetos pendem como frutas
— os objetos também amadurecem —,
a seiva dos ferros e madeiras.

A sala precisa ser podada
— que jardineiro extirpará as ervas daninhas
                                                    [ do sofá?

A tosse do motor de popa
— onde estão os barcos
na umidade dos prédios?

Os peixes nadam na clorofila das venezianas.

                    (de Andarilho, 2000)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005


Ronaldo Costa Fernandes
• "O Tempo"; "A Imaginação dos Bastardos";
   "Indústria do Amargo"
   In Eterno Passageiro
   Varanda Edições, Brasília, 2004
• "Solilóquio"
   In Andarilho
   7Letras, Rio de Janeiro, 2000
• "O Rosto"
   In Estrangeiro
   7Letras, Rio de Janeiro, 1997