Número 138 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 12 de outubro de 2005 

«Coisas e palavras sangram pela mesma ferida.» (Octavio Paz)
 


Paula Glenadel


 

Caros,

Engraçado: a primeira vez que li o nome da carioca Paula Glenadel (1964-) foi na revista Inimigo Rumor. Não me lembro bem se ela assinava um ensaio ou uma tradução. Como na época a revista era editada por brasileiros e portugueses, fiquei com a impressão de que se tratava de uma escritora portuguesa. (Tudo bem, se eu tivesse ido ao expediente da revista, teria eliminado a dúvida. Mas nem sempre a gente faz o óbvio...)

Depois conheci a Paula Glenadel, como poeta e carioca, no lançamento de seu livro Quase uma Arte, este ano em São Paulo. Professora de literatura francesa na Universidade Federal Fluminense, ela fez pós-doutorado na Universidade de Paris VIII, com o poeta parisiense Michel Deguy.

Além de ensaios críticos e traduções, Paula escreve poesia. Seu primeiro livro de versos, A Vida Espiralada, saiu em 1999. O segundo, Quase uma Arte, já citado, é de 2005. Deste último extraí todos os textos ao lado.

O que me chama a atenção na poesia de Paula Glenadel é a forma
sensível e certeira com que ela se aproxima dos próprios sentimentos, como em "Corcéis", ou da realidade circundante, como em "A Doadora", "Uma" ou mesmo em "Crisálida".

Há um certo namoro de Paula Glenadel com a objetividade que se propõe e cultiva nas poéticas mais recentes. Bem que a poeta tenta "controlar os desembestados corcéis da alma". Mas freqüentemente ela se rende e deixa transparecer a emoção. Em seus poemas existe um observador que não quer se esconder. Ele está presente e destila ternura para com as pessoas e coisas contempladas. Há empatia do narrador para com a mulher que vai doar um rim ao marido. Também é perturbadora a cena do gavião vítima de acidente aéreo.

No livro Quase uma Arte, Paula Glenadel exibe, desde o título, uma lição de prudência. Em seu primeiro trabalho, o mineiro Drummond sugere que existe ali alguma poesia. Na mesma linha, Paula usa a conhecida expressão de Mallarmé: rien ou presque un art. Afinal, ela mesma afirma que escrever é perigoso: é uma espécie de "briga com Deus", um "contradestino" e ninguém sabe o que disso pode resultar. Pode ser nada, ou quase uma arte.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado


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Quase uma arte

Paula Glenadel

 



CORCÉIS

controlar os corcéis
da alma,
desembestados,
com mão segura
como o lastro do navio,
seu peso em areia, em ouro:

o medo dá asa a cobra
cria monstros na sombra
viaja nos desvãos
estremece os alicerces
uiva sussurrando ruínas

 

A DOADORA

A dona do bar vai doar um rim para o marido. Ela me estende os cigarros que compro todo dia. É amor isso? pergunta espantada. Eu vi em reportagem na tevê francesa homens do terceiro mundo nas fronteiras da Europa: venderam seus rins e nunca mais foram saudáveis. Alguns receberam menos do que o combinado. A dona do bar doa porque senão ele morre e isso ela não pode suportar. Por que as mulheres dos homens do primeiro mundo doariam um de seus rins aos seus maridos se podem comprar um? A dona do bar não tem dinheiro ou não pensou nisso. Fala comigo e seus olhos castanhos se arregalam.
 


UMA

apenas uma
de suas enormes mãos teria bastado
ao homem negro da praia
para segurar o jovem gavião morto
em acidente aéreo contra o vidro do restaurante
(pescoço quebrado; lindas penas, e o bico!)
quando o levou para enterrá-lo na areia
sob os olhares das crianças
 


CRISÁLIDA

                         para Luísa

agora já não pedes
meus nervos em pasto

agora já te afastas
crescida em beleza

agora me contas piadas
que aprendes ou inventas

agora pressinto tuas asas



LITANIA

                         para L.-F. Duchesne

troca de nome quem briga com deus
há nisso mais de um
jacó-israel e o anjo que o deixou coxo
saulo-paulo e a luz que o cegou

troca de nome quem perde ganhando
troca de nome quem renasce
troca de nome quem escreve

escrever é um contradestino
escrever desnomeia o nomeado
escrever desafia e afina o hieróglifo
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

Paula Glenadel
•  In Quase uma Arte
    Cosac Naify, São Paulo/
    7Letras, Rio de Janeiro; 2005