Número 146 - Ano 3

São Paulo, quarta-feira, 7 de dezembro de 2005

«A poesia toda é uma viagem ao desconhecido.» (Vladímir Maiakóvski)
 


Ledusha B. A. Spinardi


Caros amigos,

Paulista de Assis, da classe de 1953, Leda Beatriz Abreu Spinardi, ou Ledusha B.A. Spinardi, considera-se uma alma carioca. Preferia ter nascido no Rio, onde viveu durante anos e publicou seu livro de estréia, Risco no Disco, de 1981. Apesar disso, mora em São Paulo, onde traduz livros e escreve poesia.

Poeta com acento pop, Ledusha é identificada com os autores da chamada poesia marginal carioca, dos anos 70 e 80. Poemas dela foram musicados por gente do rock como Lobão e Cazuza, do pop mais recente, como Bebel Gilberto e Fernanda Porto, e também por emepebistas do porte de Francis Hime.

O segundo livro de Ledusha, Finesse e Fissura, saiu em 1984. Depois disso, ela já publicou duas outras coletâneas: 40 Graus (1990) e Exercícios de Levitação (2002). Este  título mais recente resultou de uma coluna de poemas, quase sempre em prosa, que a escritora manteve no jornal Folha de S. Paulo, entre 1996 e 2000. Reescritos e depurados, viraram livro. Com exceção do poema "Olhando as Ilhas", que é de 40 Graus, todos os textos ao lado foram extraídos de Exercícios de Levitação.

Coerentes com sua origem jornalística, os poemas enveredam, quase sempre, pela crônica poética. É o caso de "Rombos" e "Há". Ambos lançam mão de enumerações para fazer pequenos levantamentos de tipos humanos — o primeiro de mulheres; o outro, de homens.

Em "Cena Íntima" e "Retorno",  paisagens externas se fundem a estados de alma da poeta para traçar instantes de encantamento ou de reflexão. Em todos os textos percebe-se o olhar penetrante de uma mulher. Às vezes, isso aparece de forma muito explícita, como em "Olhando as Ilhas" ou em "Veleiros Brancos". Em outros casos, a presença desse olhar é mais discreta, mas tenho a impressão de que ele é um dos eixos de toda a obra de Ledusha.


Abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

 

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CANÇÕES INFANTIS DE
JOSÉ PAULO PAES E MADAN

Se você tem crianças – filhos, netos, sobrinhos ou aquela velha criaturinha dentro de si –, dê uma escutada no CD Brincando com Palavras. O disco, que está saindo pela gravadora independente Lua Music,  traz poemas infantis de José Paulo Paes musicados pelo cantor e compositor paulista Madan. Do pouco que conheço nessa área, creio que José Paulo Paes (1926-1998) é o autor brasileiro que produziu a mais criativa poesia para crianças desde o já clássico Ou Isso ou Aquilo, de Cecília Meireles (1901-1964).

As melodias de Madan conseguem captar com perfeição o espírito lúdico dos textos. Na canção “O Bife”, alguém sai em busca de um bife desaparecido: “Sendo bife a cavalo / Fugiu no galope / Não vou mais achá-lo”. Há também a ecológica "Raridade", que tem como refrão: "E se o homem não pára / De caçar arara / Hoje uma ave rara / Ou a arara some / Ou então muda seu nome / Para arrara". Por fim, vem o divertido “Gato da China”, cujo poema faço questão de transcrever na íntegra:


GATO DA CHINA

Era uma vez
Um gato chinês

Que morava em Xangai
Sem mãe e sem pai

Que sorria amarelo
Para o Rio Amarelo

Com seus olhos puxados
Um pra cada lado

Era um gato mais preto
Que tinta nanquim

De bigodes compridos
Feito um mandarim

Que quando espirrava
Só fazia “chin!”

Era um gato esquisito
Comia com palitos

E quando tinha fome
Miava “ming-au!”

Mas lambia o mingau
Com sua língua de pau

Não era um bicho mau
Esse gato chinês

Era até legal
Quer que eu conte outra vez?

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Veleiros brancos

Ledusha B. A. Spinardi

 



OLHANDO AS ILHAS

a primeira nuvem fosca nos olhos
a primeira alegria talhada no vácuo
o namorado esteta que chorava à toa
o atlas que homem nenhum me deu



PRECE DE UM DIA QUASE
IGUAL A TODOS

Deus dos delicados, não me abandone nessa guerra insana. Minha máquina de ser beira a pane enquanto o veludo da voz de Billie lambe as paredes do lusco-fusco. Abençoe, senhor, tudo que dói em nós, indispensável. As tardes despenteadas em Grumari, as lágrimas do homem que me amou e nunca disse, o negro agonizante sob o sol narcísico de Ipanema, as crianças que tão cedo me deixaram farta de lágrimas e leite, o eco esquivo de Frederico, sinais de musgo. Abençoe as escarpas da minha vida enquanto desenterro estas palavras — o carmim destas palavras — com as lascas afiadas da dor. Sonho piscinas, atraída pelas labaredas. Preciso dormir bem dentro das suas asas enormes, pai.



CENA ÍNTIMA

Outubro termina a bordo de um ventinho de cambraias, perfeito para cílios e lábios. Ainda há borboletas soprando o véu da primavera. Do
outro lado da rua, através dos brincos-de-princesa na treliça que contorna a varanda, posso sentir o coração de um sabiá pulsar ao
compasso solitário de um assobio. A luz da tarde anuncia subitamente escuros, abafa-se, e logo a tempestade cai, despenteando o cenário com raios esplêndidos. Cai estrondosa e se vai, deixando a tarde fresca e perfumada. Nos intervalos entre gotas tardias, pesco um
sentimento ímpar de plenitude. Mosaicos de folhas e galhos repousam no asfalto cravejado de granizos.



ROMBOS

                            La femme n'existe pas. (J. Lacan)

Marta é tão delicada que escolheu deixar saudades. Lia comprou palmeiras e depois cadê varanda? Virgínia engoliu parafusos, sentindo
a falta dos seus. Lídia aboliu o sexo e agora só vai de ópera e dieta à base de aipo. Silvia trocará as cortinas e as próteses mamárias.
Dulce deixou a análise e mandou o fulaninho, de carrinho, enfim, às favas. Vilma atravessa os domingos nadando em champanhe e ciúme.
Suzana amou sem reservas e casou-se com o bandido. Clarice fechou-se em copas quando a mãe foi fazer ginástica. Paula se faz de artista,
mas é mesmo uma mimada. Sílvia ensaiou tanto o tapa que desmilingüiu-se em beijos. Marilena era cretina, só mandava bem no
papo. Laís fez o que não pôde pra salvar o casamento. Eulália queimou suas cartas mas guardou os envelopes. Clara sonha com Veneza enquanto devora suspiros. Renata nem pensa em ter filhos, apesar do alto salário. Norma diz que se mata caso o cachorro só lata. Rita rendeu-se ao gringo, agora que ficou surda.



RETORNO

Gastei toda aquarela, recolhida. Silêncio de barcos acidentados, fruta madura espatifando-se na terra. Colhi no ventre da treva estas
palavras tocando-as devagar, com medo de que por trás de suas faces frescas me aguardasse uma emboscada. Sei pelo avesso suas formas
conturbadas, atormentam-me seus abismos híbridos. Vê-las pulsando salva-me da lábia estofada cotidiana, mas também me expõe à rude dimensão da liberdade e seu preço poucas vezes raso. Cintila a pedra noturna dos meus olhos nos seus olhos, sei que posso atravessá-los num sopro. Após tantas águas fugidias, o refluxo. As portas batem, como nos dias arejados.



VELEIROS BRANCOS

Alheia confiro a curva bem feita dos meus pés
minhas coxas que guardam o último sol
onde se encontram

A lua acena veleiros brancos
beijando a janela escancarada

Faz muito calor por aqui
faz calor nas dunas do meu corpo
que sei, pressentes
como pressinto a delicada febre das tuas mãos

No umbigo da noite destilo vapores
lavanda e mirra para que me queiras
tanto
e temas quase nada

No teu silêncio de homem
sinto que vislumbras minhas veredas
Assim permaneço recostada
os travesseiros de pluma afagando o dorso
e te quero dessa forma inescrutável
entre o tesão e a perplexidade.





Os que só tragam com filtro. Os que conduzem a dança. Os de papo requentado. Os que espalham o conflito. Os grosseiros de foulard. Os que fazem as cutículas. Os que têm presas no olhar. Os prósperos despreparados. Os que vão lamber o limbo. Os belos atormentados. Os previsíveis sem sal. Os ternos de abraço manso. Os que usam o saber como arma de poder. Os que citam sem parar. Os que gostam de mulheres. Os que gostam das mulheres. Os mitos desamparados. Vampiros por trás de lentes. Os que só querem mamar. Os que portam falos bélicos. Os marinheiros sem mar. Os que nos devolvem o riso. Sensíveis sem onde morar. Os que decifram. Os que devoram.
Casados infantilizados. Os que consertam cadeiras. Os indeléveis carnais. Os de coração falido. Raros sexys calados. Os gananciosos
banais. Marxistas que espancam mulheres. Os que se desmancham no ar.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

Ledusha B. A. Spinardi
• "Olhando as Ilhas"
   In 40 Graus
  
Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1990
• "Prece de um dia..."; "Cena íntima"; "Há";
   "Rombos"; "Retorno"; "Veleiros Brancos"
  
In Exercícios de Levitação
  
7Letras, Rio de Janeiro, 2002