Número 147 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 14 de dezembro de 2005

«Verde-azinhavre é a casa do esquecimento.» (Paul Celan)
 


René Char (foto de Man Ray)


Caros amigos,


Nesta edição, o boletim poesia.net completa três anos em circulação. Por aqui já passaram pelo menos uma centena e meia de poetas. O cardápio tem sido bem variado nesta ceia poética semanal. A regra da casa é servir iguarias das mais diferentes origens temporais, geográficas e estilísticas. De Drummond a Pessoa. De William Carlos Williams a Jacques Prévert. De Alphonsus de Guimaraens (pai e filho) a Affonso Manta. De Maiakóvski a Cecília Meireles. Do quinhentista Sá de Miranda aos juveníssimos Paulo Ferraz, Virna Teixeira e João de Moraes Filho. Clássicos e vanguardistas. Concretos e
abstratos. Homens, mulheres, velhos, moços. Poetas.

Na edição de hoje, o boletim é servido com textos de René Char (1907-1988), um dos mais importantes poetas franceses no século XX. Char aderiu ao movimento surrealista em 1929. Naquele momento, enquanto os grandes nomes do grupo — Louis Aragon, Paul Éluard, André Breton — já eram homens maduros, Char contava apenas 22 anos. Mas sua permanência no grupo durou somente até 1934. A partir daí sua poesia tomou rumos mais pessoais, embora tenha guardado, até o fim, certas marcas do surrealismo.

Para o destacado crítico francês Maurice Blanchot, os escritos  de Char são uma "revelação poética". Nascido na Provença, o poeta conserva em seus versos (muitas vezes em forma de prosa) o mundo da terra, dos rios, dos animais. Mas seu lirismo não é de fácil leitura. Por causa de suas metáforas enigmáticas, há quem o acuse de abusar do hermetismo para seduzir leitores universitários ciosos de vanguardismos e mistérios. Exagero. O certo é que Char escreveu algumas das páginas mais interessantes da poesia contemporânea.

Outro aspecto importantíssimo da biografia de Char foi sua ativa participação na Resistência antinazista, na qual atuou com o nome de guerra de capitão Alexandre. Seu livro Feuillets d'Hypnos (Folhas de Hipnos), de 1946, relata a experiência nos anos da guerra. Por sua atuação, Char foi nomeado Cavaleiro da Legião de Honra e Oficial das Artes e Letras. Também recebeu a Medalha  condecorado com a Medalha da Resistência e a Cruz de Guerra.

Pouco se pode encontrar da poesia de Char em livrarias brasileiras. No momento, aparentemente só existe uma coletânea bilíngüe, O Nu Perdido e Outros Poemas, traduzida pelo poeta Augusto Contador Borges.


Um abraço de aniversário,

Carlos Machado

 

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Nas ruas da cidade

René Char

 



CONSOLAÇÃO

Nas ruas da cidade caminha o meu amor. Pouco importa aonde vai no tempo dividido. Já não é meu amor, todos podem falar-lhe. Ele já não se recorda. Quem de fato o amou?

Procura o seu igual no voto dos olhares. O espaço que percorre é a minha fidelidade. Ele desenha a esperança e ligeiro despede-a. Ele é preponderante sem tomar parte em nada.

Vivo no seu abismo como um feliz destroço. Sem que ele saiba, a minha solidão é o seu tesouro. No grande meridiano onde inscreve o seu curso é a minha liberdade que o escava.

Nas ruas da cidade caminha o meu amor. Pouco importa onde vai no tempo dividido. Já não é meu amor, todos podem falar-lhe. Ele já não se recorda. Quem de fato o amou e de longe o ilumina para que não caia?

 

ALLÉGEANCE

Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n'est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se
souvient plus; qui au juste l'aima?

Il cherche son pareil dans le voeu des regards. L'espace qu'il parcourt est ma fidélité. Il dessine l'espoir et léger l'éconduit. Il est prépondérant sans qu'il y prenne part.

Je vis au fond de lui comme une épave heureuse. A son insu, ma solitude est son trésor. Dans le grand méridien où s'inscrit son essor, ma liberté le creuse.

Dans les rues de la ville il y a mon amour. Peu importe où il va dans le temps divisé. Il n'est plus mon amour, chacun peut lui parler. Il ne se souvient plus; qui au juste l'aima et l'éclaire de loin pour qu'il ne tombe pas?

                    De Fureur et Mystère (1962)


A VIDRAÇA

Chuvas puras, esperadas mulheres,
O rosto que lavais,
De vidro condenado aos sofrimentos,
É o rosto do revoltado;
O outro, fremindo ao fogo da lareira,
É a vidraça do afortunado.

Vos quero bem, ó dúplice mistério,
A um e outro estou ligado;
Dói-me tanto e me sinto bem.


LE CARREAU

Pures pluies, femmes attendues,
La face que vous essuyez,
De verre voué aux tourments,
Est la face du révolté;
L’autre, la vitre de l’heureux,
Frissone devant le feu de bois.

Je vous aime mystères jumeaux,
Je touche à chacun de vous;
J’ai mal et je suis léger.



FIZESTE BEM EM PARTIR,
ARTHUR RIMBAUD!

Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Teus dezoito anos refratários à amizade, à malevolência, à bobeira dos poetas de Paris, assim como ao zunzum de abelha estéril de tua família ardenesa um pouco doída, fizeste bem espalhá-los aos quatro ventos, em jogá-los sob a lâmina de sua guilhotina precoce. Tiveste razão em abandonar o bulevar dos preguiçosos, os botequins, os mija-liras, pelo inferno das feras, pelo comércio dos espertos e o bom-dia dos simples.

Este impulso absurdo do corpo e da alma, esta bala de canhão que explode seu alvo, sim, é isso mesmo a vida de um homem! Não se pode, indefinidamente, saindo da infância, estrangular seu próximo. Se os vulcões mudam pouco de lugar, sua lava percorre o grande vazio do mundo levando virtudes que cantam em suas feridas.

Fizeste bem em partir, Arthur Rimbaud! Ainda há quem creia, sem provas, que contigo a felicidade é possível.



TU AS BIEN FAIT DE PARTIR,
ARTHUR RIMBAUD!

Tu as bien fait de partir, Arthur Rimbaud! Tes dix-huit ans réfractaires à l'amitié, à la malveillance, à la sottise des poètes de Paris ainsi qu'au ronronnement d'abeille stérile de ta famille ardennaise un peu folle, tu as bien fait de
les éparpiller aux vents du large, de les jeter sous le couteau de leur précoce guillotine. Tu as eu raison d'abandonner le boulevard des paresseux, les estaminets des pisse-lyres, pour
l'enfer des bêtes, pour le commerce des rusés et le bonjour des simples.

Cet élan absurde du corps et de l'âme, ce boulet de canon qui atteint sa cible en la faisant éclater, oui, c'est bien là la vie d'un homme! On ne peut pas, au sortir de l'enfance, indéfiniment étrangler son prochain. Si les volcans changent peu de place, leur lave parcourt le grand vide du monde et lui apporte des vertus qui chantent dans ses plaies.

Tu as bien fait de partir, Arthur Rimbaud! Nous sommes quelques-uns à croire sans preuve le bonheur possible avec toi.

                    De Fureur et Mystère (1962)



FREQÜÊNCIA

O dia todo servindo ao homem, o ferro aplicou o torso sobre a lama inflamada da forja. Com o tempo, as curvas gêmeas de suas pernas rebentaram a fina noite do metal espremido sob a terra.

Sem pressa, o homem deixa o trabalho. Mergulha uma última vez os braços no flanco sombrio do rio. Agarrará enfim o bordão gelado das algas?


FRÉQUENCE

Tout le jour, assistant l'homme, le fer a appliqué son torse sur la boue enflammée de la forge. A la longue, leus jarrets jumeaux ont fait éclater la mince nuit du métal à la étroit sous la terre.

L'homme sans se hâter quitte le travail. Il plonge une dernière fois ses bras dans le flanc assombri de la rivière. Saura-t-il enfin saisir le bourdon glacé des algues?

                    De Fureur et Mystère (1962)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2005

René Char
• "Consolação"
   In Fúria e Mistério
   Tradução de Yvette K. Centeno
   Edições Cotovia, Lisboa, 1995
• "A vidraça"
   In Antologia da Poesia Francesa
   (do Século IX ao Século XX)
  
Tradução e organização de Cláudio Veiga
   Record, Rio de Janeiro, 1999
• "Fizeste Bem em Partir, Arthur Rimbaud!";
   "Freqüência"
   In O Nu Perdido e Outros Poemas
   Tradução, ensaio e notas de
   Augusto Contador Borges
   Iluminuras, São Paulo, 1995