Número 158 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 12 de abril de 2006

«Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz.» (Vladímir Maiakóvski)
 


Déborah de Paula Souza


Caros amigos,
 
 
A jornalista paulistana Déborah de Paula Souza talvez seja uma poeta bissexta, para usar a classificação de Manuel Bandeira. Embora garanta que nunca parou de escrever, ela publicou um livro no início dos anos 80 e agora, mais de duas décadas depois, acaba de aprontar o segundo. O primeiro, Moça Mousse Musselina, de 1982, saiu pelas Edições Pindaíba, selo identificado com o que se chamou, nos anos 70 e 80, de poesia marginal.
 
Os escritos de Déborah, no entanto, não tinham nada da suposta “marginalidade” da editora. Ao ler o Moça Mousse, o poeta José Paulo Paes destacou a leveza com que a jovem poeta trabalhava com itens do dia-a-dia: “Agrada-me em você uma certa delicadeza de toque, uma certa finura no descobrir patético do cotidiano que, mais do que certas audácias, parecem ser o seu natural — e, por natural, melhor — de poeta”. 
 
Para o crítico Fábio Lucas, leveza é também a palavra-chave nos textos inaugurais de Déborah.  “Gosto do seu poder de síntese, da sensualidade contida/revelada. Você pisa o território lírico com a leveza de uma gata. Mas o texto reflete tempestades invisíveis, atitude mental que a aproxima de Clarice Lispector”, escreve ele.
 
Agora, após depois de sua extensa temporada de silêncio, Déborah tem pronto O Livro Vermelho, um trabalho que reúne poemas inéditos — e, claro, nada tem a ver com a obra homônima do camarada Mao. O leitor deste boletim encontra aqui a oportunidade de ler em primeira mão alguns dos poemas dessa nova coletânea. No final, incluí também "Enxoval", um texto da primeira obra.
 
A autora, naturalmente, está mais madura. Mas, ao que parece, não perdeu o gosto pela descoberta de pequenas coisas do cotidiano, sempre encantada com "os ovos de santa clara / a gema das coisas todas". Ela sabe que a poesia, assim como o amor e tantos outros objetos de risco, deixa o poeta como "criança pequena brincando com navalhas".

 
 
 Abraço,
 
 Carlos Machado

 

 

                     • • •

 

DORA FERREIRA DA SILVA

A poesia brasileira perdeu na semana passada uma de suas vozes mais expressivas, a poeta e tradutora Dora Ferreira da Silva. Autora de uma obra rigorosa e multilaureada (ganhou três vezes o prêmio Jabuti), Dora escreveu livros como Andanças, Talhamar, Poemas da Estrangeira e Hídrias. Grande tradutora, transpôs para o português nomes como Rilke, Saint-John Perse e Hölderlin. Sua versão das Elegias de Duíno, de Rilke ("Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos / me ouviria"), constitui uma referência na tradução de poesia no Brasil. Dora Ferreira da Silva nasceu em Conchas (SP) e faleceu aos 86 anos.

 

 

Brincando com navalhas

Déborah de Paula Souza

 


A LÂMINA

Tonta com o vinho
das tuas palavras
tantra sob a lâmina
das tuas ciladas
morta de dar risadas
brilho como falsa jóia
— e tão cálida —
zonza entre tuas mãos e tuas facas
santa com perfume de dálias
sem sutiã, sem rumo, sem sandálias
criança pequena brincando com navalhas



A GRAÇA

Diante da poesia de tudo
é que eu enfim me ajoelho
e aperto os olhos
pra focar seu lume

Estas palavras nunca foram minhas
— a poesia é dona de si mesma
e distribui suas senhas faiscantes

Estou a seus pés
e a mãe do mundo me abençoa
ela tem suas vaidades, brinca comigo
me afaga e me atordoa

Vive em seu altar
em luxo de montanhas e placentas
repleta de diamantes

São dela todas as coisas
as palavras, as nascentes, as faíscas
este instante



COM O DIABO NO CORPO

De forma que entra
sem cerimônia
no corpo da mulher
bufando como animal
com chifres quase alados

De modo que toca o intocável
e bole e dança
até que ela lhe prepare
com alegria e gritos
perfumes, crianças
e toda sorte de escândalos

De maneira que agarra
seus cabelos
e respira como um bicho
recendendo a sândalo
e molha seu corpo
com saliva e cuidados

É assim que penetra o diabo
fundo como punhal ou lembranças
e só dentro da mulher ele alcança
a paz e seus contrários

Então é homem, filho, calmaria
santo profeta de velhas mesquitas
irmão do que é belo e são
senhor das coisas benditas



AUGUSTO


Com ele inventei Portugal
compreendi azeites de oliva
jogo de cartas, conhaque e anarquia

Devo a ele esta facilidade
de me encantar com os homens
mas também o medo esquisito
de um dia vê-los morrer
meio loucos meio meninos
confundindo o nome dos filhos
na aflição de quem se pergunta
onde termina a vida
onde começa Deus



A FOME

O ovo de santa clara
a gema das coisas todas
o sol os amarelos
as gérberas na sala

Os dilúvios são deus
os naufrágios muitos
(morrer é simples no fim)

Está passando depressa
o tempo secará em mim
o sonho a dor a promessa
o sexo e suas miragens

Mas antes de ficar velha
eu vou comer a paisagem

                      De O Livro Vermelho (inédito)

 

ENXOVAL

jamais conheci esse homem
que com certeza me dará
a parte de sua vida — a mais doce
um disco de debussy
gomos de mexerica
beijos na boca seu sexo sua lívida
expressão de amor

jamais conheci esse homem
com quem terei um filho um cachorro um aparelho de chá
a louca intimidade das dores de garganta

(e por jamais tê-lo conhecido
é que me preparo
no ritual patético das moças
separo um vidrilho
um corpo debruado em cio
a maternidade branca das louças)

                      De Moça Mousse Musselina (1982)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Déborah de Paula Souza
• "A Lâmina", "A Graça", "Com o Diabo no
   Corpo", "Augusto"  e "A Fome"
   In O Livro Vermelho (inédito)
• "Enxoval"
   In Moça Mousse Musselina
  
Pindaíba, São Paulo, 1982