Número 168 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 21 de junho de 2006

«As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase.» (Carlos Drummond de Andrade)
 


Luíza Mendes Furia


Caros,


Paulista de Caçapava, a jornalista, poeta e tradutora Maria Luíza Mendes Furia nasceu em 1961.  Iniciou-se bem cedo no ofício da poesia: aos 16 anos publicou seu primeiro livro, Madrugada e Outros Poemas (1978). Muito ativa literariamente, Luíza participou de diversas antologias coletivas e tem poemas em diversos jornais e revistas.

Em 1998, saiu seu Inventário da Solidão, livro que mereceu acolhida favorável da crítica. Em 2001, a autora produziu Vênus em Escorpião, coletânea reunida em edição de tiragem limitada. Luíza tem ainda inédita a coletânea Incisões no Branco, que recebeu menção honrosa no 2º Prêmio Cidade de Juiz de Fora, em 2003.

Conhecer a poesia de Luíza Mendes Furia é penetrar num rico universo lírico. Em seu "Poema-1", que a poeta parece adotar como profissão de fé, ela ambiciona "esculpir conchas", sabendo que se trata de "um segredo do mar e dos moluscos". Mas ela não se rende: propõe a si mesma esse "desafio interminável".

No poema "Saudade", cuja epígrafe é o primeiro verso da "Hora Absurda", de Fernando Pessoa, a poeta descobre que "a alma é um jardim abandonado / ao ar do outono e à algidez das ruas". Pessoa se orgulharia dessa homenagem. Os dois poemas citados até agora pertencem ao livro Inventário da Solidão.

De outro volume, Incisões no Branco, extraí o poema sem título  "[O gole, o sorvo de ar]". Aqui a poeta provoca um clima de pesadelo, sufocação e "fim de tudo", com o ser angustiado diante da "poeira do não vivido". 

Para concluir esta breve notícia da poesia de Luíza Mendes Furia, escolhi alguns poemas entre os trinta que formam o exuberante Vênus em Escorpião. Com um lirismo afiadíssimo, a poeta constrói textos eróticos em que ousadia e leveza se combinam em invejável harmonia.

Sempre pensei comigo que um grande poeta se revela de várias formas. Uma delas, sem dúvida, é na capacidade de escrever poemas de amor e, mais ainda, poemas eróticos. A explicação é simples: o tema é tão velho, tão batido, que só um talento especial consegue extrair dele alguma emoção nova e legítima. Luíza Mendes Furia realiza esse feito. Não é preciso citar muito. Basta observar como termina o poema "XXIV - Orgasmo":  "E propaga /
em longas ondas pela treva /
sua música de seda."


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



 

Vênus em Escorpião

Luíza Mendes Furia

 




POEMA-1

Esculpir conchas
tão delicadas
e diversas
é um segredo do mar
e dos moluscos.

Fazer versos
como quem esculpe conchas
um desafio interminável
ininterrupto.



SAUDADE

               O teu silêncio é uma nau com
               todas as velas pandas
                        Fernando Pessoa

É frágil o coração que cruza a noite
e as naves atracadas no silêncio
Pra onde quer que vá existe um rumo
nesta cidade-oceano de mil bússolas

Ancora na memória um teu sorriso
E a saudade murmura sem que escutes
A voz do marinheiro visionário
sobe em estrela e se desfaz em nuvem

Veloz a madrugada foge em sombras
e voa esta canção que te procura
A alma é um jardim abandonado
ao ar do outono e à algidez das ruas


                    De Inventário da Solidão (1998)
 

[O GOLE, O SORVO DE AR]

o gole, o sorvo de ar
a cada instante inconcluso

e, ao fim de tudo,
o que restar
será confuso

a polpa que mordes
não deixará fiapos
nos teus dentes

mas a poeira
do não vivido
entupirá tuas narinas
silenciosamente


                    De Incisões no Branco (2003)
 


VÊNUS EM ESCORPIÃO

X

Não. Não há nenhuma emoção.
Apenas uma folha seca sob a blusa.
E no lugar do sexo uma concha oca.

Prazeres calcinados
Paixão cauterizada
como uterina ferida.

Nenhuma emoção. Nenhuma voz
a sacudir o corpo em fogo ou lágrimas
ternura ou espasmos.

Apenas a esperança muda
de que ninguém pise na folha seca
sob a blusa.


XVI

Acaricia
meu rosto com teu rosto
meu sexo com teu sexo
Ondula
meu mar, me salga,
me trespassa, reinaugura
a aurora entre meus seios

Venta em meus cabelos
Chove no meu peito
Semeia e colhe

Acolhe
minhas mãos, meus olhos,
faz-me ser tua

Porque eu desejo o teu desejo
Porque eu só me encontro quando me procuras.


XXI

Tua língua
é chama e pétala
na minha boca

Uma orquídea
rósea e fulva
se alastra no meu ventre

Selvagem e pura
no meu corpo
te enraízas.


XXIII

Pões no meu lábio a cor escura das cerejas
Eu coloco a língua purpúrea nos teus lábios
para colher a fruta oculta no teu ventre
embebedar-me da doçura do seu sumo.

Então derramas vinho em minha boca
depois lambes o rubro dos meus seios
e há um roçar de pétalas vermelhas
transmutando seu perfume em chamas lentas

Até que irrompa o incêndio na penumbra
e suba, incontrolável, um grito ardente.

Depois, tudo serena em meio às cinzas
e mergulhamos no sono oloroso e fundo
com que os deuses presenteiam suas fênix.


XXIV - ORGASMO

Escuto
este silêncio no meu sangue

rio suaviloqüente na noite
azul e brilhante

É assim que
aflui aos lábios:
com delicadeza

E propaga
em longas ondas pela treva
sua música de seda.


                    De Vênus em Escorpião (2001)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Luíza Mendes Furia
•  "Poema-1", "Saudade"
    Inventário da Solidão
   
Ed. Giordano, São Paulo, 1998
•  "[O gole, o sorvo de ar]"
    In Incisões no Branco
   
Inédito, 2003
•  "Vênus em Escorpião"
    In Vênus em Escorpião
  
 Livro de tiragem limitada
    Edição da autora, São Paulo, 2001