Luíza Mendes Furia
Caros,
Paulista de Caçapava, a jornalista, poeta e tradutora Maria Luíza Mendes Furia
nasceu em 1961. Iniciou-se bem cedo no ofício da poesia: aos 16 anos
publicou seu primeiro livro, Madrugada e Outros Poemas (1978). Muito
ativa literariamente, Luíza participou de diversas antologias coletivas e tem
poemas em diversos jornais e revistas.
Em 1998, saiu seu Inventário da Solidão, livro que mereceu acolhida
favorável da crítica. Em 2001, a autora produziu Vênus em Escorpião,
coletânea reunida em edição de tiragem limitada. Luíza tem ainda inédita a
coletânea Incisões no Branco, que recebeu menção honrosa no 2º
Prêmio Cidade de Juiz de Fora, em 2003.
Conhecer a poesia de Luíza Mendes Furia é penetrar num rico universo lírico. Em
seu "Poema-1", que a poeta parece adotar como profissão de fé, ela ambiciona
"esculpir conchas", sabendo que se trata de "um segredo do mar e dos moluscos".
Mas ela não se rende: propõe a si mesma esse "desafio interminável".
No poema "Saudade", cuja epígrafe é o primeiro verso da "Hora Absurda", de
Fernando Pessoa, a poeta descobre que "a alma é um jardim abandonado / ao ar
do outono e à algidez das ruas". Pessoa se orgulharia dessa homenagem. Os dois
poemas citados até agora pertencem ao livro Inventário da Solidão.
De outro volume, Incisões no Branco, extraí o poema sem título "[O
gole, o sorvo de ar]". Aqui a poeta provoca um clima de pesadelo, sufocação e
"fim de tudo", com o ser angustiado diante da "poeira do não vivido".
Para concluir esta breve notícia da poesia de Luíza Mendes Furia, escolhi alguns
poemas entre os trinta que formam o exuberante Vênus em Escorpião. Com um
lirismo afiadíssimo, a poeta constrói textos eróticos em que ousadia e leveza se
combinam em invejável harmonia.
Sempre pensei comigo que um grande poeta se revela de várias formas. Uma delas,
sem dúvida, é na capacidade de escrever poemas de amor e, mais ainda, poemas
eróticos. A explicação é simples: o tema é tão velho, tão batido, que só um
talento especial consegue extrair dele alguma emoção nova e legítima. Luíza
Mendes Furia realiza esse feito. Não é preciso citar muito. Basta observar como
termina o poema "XXIV - Orgasmo": "E propaga /
em longas ondas pela treva /
sua música de seda."
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Vênus em Escorpião
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Luíza Mendes Furia |
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POEMA-1
Esculpir conchas
tão delicadas
e diversas
é um segredo do mar
e dos moluscos.
Fazer versos
como quem esculpe conchas
um desafio interminável
ininterrupto.
SAUDADE
O teu silêncio é uma nau com
todas as velas pandas
Fernando Pessoa
É frágil o coração que cruza a noite
e as naves atracadas no silêncio
Pra onde quer que vá existe um rumo
nesta cidade-oceano de mil bússolas
Ancora na memória um teu sorriso
E a saudade murmura sem que escutes
A voz do marinheiro visionário
sobe em estrela e se desfaz em nuvem
Veloz a madrugada foge em sombras
e voa esta canção que te procura
A alma é um jardim abandonado
ao ar do outono e à algidez das ruas
De Inventário da Solidão (1998)
[O GOLE, O SORVO DE AR]
o gole, o sorvo de ar
a cada instante inconcluso
e, ao fim de tudo,
o que restar
será confuso
a polpa que mordes
não deixará fiapos
nos teus dentes
mas a poeira
do não vivido
entupirá tuas narinas
silenciosamente
De Incisões no Branco (2003)
VÊNUS EM ESCORPIÃO
X
Não. Não há nenhuma emoção.
Apenas uma folha seca sob a blusa.
E no lugar do sexo uma concha oca.
Prazeres calcinados
Paixão cauterizada
como uterina ferida.
Nenhuma emoção. Nenhuma voz
a sacudir o corpo em fogo ou lágrimas
ternura ou espasmos.
Apenas a esperança muda
de que ninguém pise na folha seca
sob a blusa.
XVI
Acaricia
meu rosto com teu rosto
meu sexo com teu sexo
Ondula
meu mar, me salga,
me trespassa, reinaugura
a aurora entre meus seios
Venta em meus cabelos
Chove no meu peito
Semeia e colhe
Acolhe
minhas mãos, meus olhos,
faz-me ser tua
Porque eu desejo o teu desejo
Porque eu só me encontro quando me procuras.
XXI
Tua língua
é chama e pétala
na minha boca
Uma orquídea
rósea e fulva
se alastra no meu ventre
Selvagem e pura
no meu corpo
te enraízas.
XXIII
Pões no meu lábio a cor escura das cerejas
Eu coloco a língua purpúrea nos teus lábios
para colher a fruta oculta no teu ventre
embebedar-me da doçura do seu sumo.
Então derramas vinho em minha boca
depois lambes o rubro dos meus seios
e há um roçar de pétalas vermelhas
transmutando seu perfume em chamas lentas
Até que irrompa o incêndio na penumbra
e suba, incontrolável, um grito ardente.
Depois, tudo serena em meio às cinzas
e mergulhamos no sono oloroso e fundo
com que os deuses presenteiam suas fênix.
XXIV - ORGASMO
Escuto
este silêncio no meu sangue
rio suaviloqüente na noite
azul e brilhante
É assim que
aflui aos lábios:
com delicadeza
E propaga
em longas ondas pela treva
sua música de seda.
De Vênus em Escorpião (2001)
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