Número 173 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 26 de julho de 2006 

«A alma é um jardim abandonado / ao ar do outono e à algidez das ruas» (Luíza Mendes Furia) *
 


A
ntónio Ramos Rosa


Caros,


Nascido no Algarve, sul de Portugal, António Ramos Rosa (1924-) é considerado um dos mais representativos poetas portugueses da atualidade. Foi funcionário de escritório, professor e tradutor, antes de se dedicar com exclusividade à poesia. Editou revistas literárias, escreveu críticas e ensaios.

Na área específica da poesia, estreou em 1958, com o volume O Grito Claro. Desde então publicou um número de coletâneas poéticas que já entrou na casa dos 70 títulos, sem contar as antologias. Prolífero, chegou a dar ao prelo punhados de livros no mesmo ano, como ocorreu em 1980 (cinco) e 1990, 1992 e 2001(quatro cada).

Poeta em tempo integral (de que outra forma escreveria tanto?), António Ramos Rosa entende a poesia como uma forma de libertação. Escreve ele: "Enquanto a sociedade mantiver a sua rigidez e as suas múltiplas, patentes ou ocultas, formas de repressão, onde a vida não pode desenvolver-se em toda a plenitude e dignidade, a poesia deverá ser o que ela já é nos mais significativos poetas do nosso tempo: uma afirmação de dignidade e de liberdade humana".

Esse sinal de igualdade traçado entre poesia e libertação parece ser um conceito que Ramos Rosa cultiva desde seu primeiro livro. Leia-se, a propósito, o "Poema dum Funcionário Cansado", que abre a pequena seleta ao lado. "Débito e Crédito Débito e Crédito (...) / o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente // e debitou-me na conta de empregado".

Esse olho lírico aberto para o mundo está presente em toda a obra do poeta. Seus textos contêm um lirismo intrigante, que não se sabe bem se está voltado para uma mulher, uma idéia ou para a própria poesia.

Curioso: quando fiz a seleção desses poemas, não escrevi nada a respeito do trabalho de Ramos Rosa. No entanto, anotei a seguinte frase: "artesão esculpindo o rosto da palavra". Agora, meses depois, não sei mais qual lampejo me levou a fazer essa anotação. É bem provável que estivesse ligado ao verso "As palavras têm rosto: ou de silêncio ou de sangue".

António Ramos Rosa é, sim, um artista que esculpe o rosto da palavra.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



P.S. em 08/03/2014:

O poeta António Ramos Rosa faleceu em setembro de 2013.


 

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JOSÉ MARIA CANÇADO

José Maria CançadoA literatura brasileira perdeu, na semana passada (dia 19/7), um de seus pesquisadores mais sérios e dedicados, o mineiro José Maria Cançado (foto). Escritor, jornalista, crítico literário e professor da PUC-MG, Cançado é autor de livros, entre os quais destacam-se Os Sapatos de Orfeu (única biografia de Carlos Drummond de Andrade publicada até
agora), Marcel Proust – As Intermitências do Coração e Memórias Videntes do Brasil – A Obra de Pedro Nava.

José Maria Cançado foi submetido em setembro de 2004 a um transplante de coração. No hospital, após a cirurgia, sua mente inquieta ainda encontrou inspiração para escrever O Transplante É um Baião de Dois, um livro de poesia. Cançado morreu de problemas cardíacos, em Belo Horizonte, aos 54 anos.

Fica aqui a homenagem ao intelectual e também à pessoa de José Maria Cançado (tive a oportunidade de trabalhar com ele no jornal LEIA, em São Paulo, do qual ele foi editor, no final dos anos 80).

 

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Neste 30 de julho de 2006, completam-se 100 anos de nascimento do poeta gaúcho Mario Quintana (1906-1994).

Funcionário da poesia

António Ramos Rosa

 



POEMA DUM FUNCIONÁRIO CANSADO

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do
                                            [ quintal em frente

e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido
                                            [ o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu
                                            [ cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma só noite
                                             [ comprida
num quarto só

             De O Grito Claro (1958)
 

Tinhas um nome de trigo e de silêncio
e no círculo da tua íris a melancolia
de um verde leve e de um lilás suave.
O teu sorriso cintilava como o oiro da penumbra
O vento da sombra despenteara-te os cabelos
e o negro ramalhete de uma madeixa esguia
pendia sobre a tua fronte pálida e indecisa

Aproximei-me do teu rosto como uma vogal branca
e acariciei-o como se acaricia uma nascente de linho
ou uma pequena estrela limpa uma andorinha branca
e com os meus dedos soletrei-lhe todas as minúcias
                                                    [ mágicas

Pronunciou então o meu nome num murmúrio de
                                                    [ seda
ou como um óleo da lua O meu sangue deslizou
sob uma chuva de pólen para o lábio de uma praia
entre a primavera e o outono da ternura

Minha pequena estrela que julgara perdida
erguia-se da água com os ombros esguios
e da fonte dos ventos mais suaves
como uma ânfora de linfa ou um ramo de oiro pálido

             De Os animais do Sol e da Sombra seguido de O Corpo
             Inicial
(2003)
 

Quando o poema está completo desde o início
é porque o fogo já modelou a sua asa de mercúrio
e já está voando no âmbito sem rumo
para onde ele está no princípio e no fim

Essa asa é tão ágil que percorre o seu círculo
num só instante de fulgurante unidade
em que o que vai à frente já se encontra atrás
e o que era dois é já o um redondo

Não se pode prever esta viagem no indivisível
e no entanto o seu percurso é o idêntico o imutável
mas se o poema é a mutação constante das suas
                                       [ perspectivas
é porque o imutável é a mobilidade pura
que no seu movimento atinge a imobilidade
                                       [ completa

De igual modo o poema é a mutação do imóvel
e assim ele está em qualquer ponto do seu círculo
abrangendo o todo com a sua asa única
que equilibra com a outra asa ausente

             De Deambulações Oblíquas (2001)


Tu sabes que as palavras não estão em nenhum lugar
embora possam vir de uma região subterrânea
ou da parte mais alta da cabeça como ondas
que às vezes são de areia ou de cal mas outras de
                     [ um sangue negro ou verde

Quer escrevas quer não escrevas
estás sempre à beira de
uma zona inexplorável
mas que uma palavra a única e que tu não
                     [ esperavas e esperavas
faz estremecer como a possibilidade iminente
de uma actualidade de palavra viva
O teu corpo estremece antes e depois
porque o inviolável transgride os limites
da precária segurança desse frágil suporte
que poderia estalar e desagregar-te
Mas perante a palavra que vai à tua frente
tu sentes o glorioso frémito
da queda na brancura ou num deserto fulminante

             De A Imobilidade Fulminante (1998)
 

As palavras têm rosto: ou de silêncio ou de sangue.
O cavalo que nos domina é uma sombra apenas.
Sem sílabas de água, avança até ao outono.
Uma árvore estende os ramos. As nuvens
                                                [ subsistem.

O cavalo é uma hipótese, uma paixão constante
Na rede das suas veias corre um sangue de tempo,
uma árvore se desloca com a alegria das folhas.
Árvore e cavalo transformam-se num só ente real.

Eu que acaricio a árvore sinto a força tenaz
da testa do cavalo, a eternidade férrea,
o ser em explosão e eu tão leve folha

na sombra deste ser animal vegetal
busco a razão perfeita, a humildade estática,
a força vertical de ser quem sou e o ar.

             De Círculo Aberto (1979)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Foto Cançado: Eugenio Savio

•  António Ramos Rosa
    In Animal Olhar
    Prefácio e organização de
    Rosa Alice Branco e Rodrigo Petronio
    Escrituras, São Paulo, 2005
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* Luíza Mendes Furia, em Inventário da Solidão