Número 186 - Ano 4

São Paulo, quarta-feira, 25 de outubro de 2006

«Fique este dia e esta noite comigo e você vai possuir a origem de todos os poemas» (Walt Whitman) *
 


Micheliny Verunschk


Caros amigos,


Pernambucana, nascida em 1972, Micheliny Verunschk talvez tenha sido uma das revelações mais auspiciosas da poesia brasileira dos anos recentes. A poeta estreou em 2003, com o livro O Observador e o Nada, publicado em Recife pelas edições Bagaço. No mesmo ano, lançou Geografia Íntima do Deserto, coletânea que lhe valeu a indicação como finalista do Prêmio Portugal Telecom em 2004.

Professora de história e pós-graduanda em literatura, Micheliny recorre à figura do deserto e da secura para criar sua paisagem lírica. Nesse aspecto, como lembra o crítico e professor João Alexandre Barbosa, falecido este ano, o livro Geografia Íntima — do qual foram extraídos todos os poemas ao lado — mantém algum parentesco estético com o trabalho de outro pernambucano, João Cabral de Melo Neto, em especial na Psicologia da Composição.

Mas o parentesco não é próximo. Micheliny utiliza símbolos associados ao deserto (areias, miragem, escorpiões de fogo e sol) para deflagrar uma operação lírica bem distinta daquela de seu conterrâneo Cabral. O texto de onde recortei aqueles símbolos é "O Corpo Amoroso do Deserto", um poema de amor. Bem que o título do livro avisa: é uma geografia íntima.

Mas o deserto é apenas uma das partes dessa geografia. Há falas e ritmos de inspiração menos árida, conforme se pode constatar nos outros poemas da amostra ao lado. Embora a poesia de Micheliny seja contida e nunca assuma a palavrosidade de mata atlântica, não há sinal de aridez em
trechos como "O sono, / grande placa de cerâmica, / e o tempo, / demônio a ranger sobre o infinito" (de "Darkness").

Abraço,

Carlos Machado

 

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poesia.net n. 185

Muitos de vocês não devem ter recebido o boletim na semana passada. Infelizmente, meu provedor entrou numa lista de spammers. Assim, tudo que saía daquela fonte (inclusive o boletim) era entendido como spam e recusado em muitos sistemas de e-mail. Recebi devoluções de pelo menos 400 endereços. Vinte e quatro horas depois, fiz nova tentativa, também malograda.

Descobri, depois, que o embargo só cessaria depois de 48 horas. Peço desculpas a quem não recebeu o boletim n. 185. E também a quem o recebeu em dobro, por causa do reenvio. Para quem não recebeu o n. 185, ele está disponível neste endereço:

Geografia do deserto

Micheliny Verunschk

 



O CORPO AMOROSO DO DESERTO

Teu corpo
branco e morno
(que eu deveria dizer sereno)
é para mim
suave e doloroso
como as areias cortantes
dos desertos.
Que importa
que ignores minha sede
se tua miragem
é água cristalina.
E a miragem eu firo com mil línguas
e cada uma é um pássaro
a bebê-la.
Ferroam a minha pele
escorpiões de fogo e sol
com seu veneno
e vejo,
magoada de desejo,
os grãos tão leves
indo embora ao vento.



DARKNESS

A solidão,
essa tempestade,
esse gozo às avessas,
esse jeito de eternidade
que as coisas adquirem
mesmo sendo apenas vidro.
Essas cartas ardendo
no estômago das gavetas,
essas plumas
que surgem quando se apagam
as últimas luzes do dia.
Tudo faz a noite mais longa,
visão de uma sombra
sobre um berço.
Não há resposta
e o labirinto é o falso,
os lábios são falsos,
somente abismo,
absinto verdadeiro.
O sono,
grande placa de cerâmica,
e o tempo,
demônio a ranger sobre o infinito.



HIERÓGLIFO

Na pedra da alma
gravo a cifra
do que sinto:
sou a um só tempo
o alvo
o caçador
e o arco tenso,
estendido.



DEUS

O pássaro,
essa página branca,
voa.

O deserto,
uma língua de areia.



SEDA

Costurados
sobre mim
as mãos e os pés
dos poetas mortos.
Como maçãs inchadas,
coaguladas
logo após o café.
Destroços laminados
de algum submarino
tocam de leve
os olhos feridos
e abrem à força
as bocas
(embora saibamos
que não podemos
naufragar na sala
que ela arde de dezembro).
Sutil seria, pois,
um outro beijo
como uma serpente
num cesto de fina palha,
mas ainda preferível este:
um verme
um fuso
uma flor:
aberta em chaga



DA ROTINA

Varrer o dia de ontem
que ainda resta pela sala,
o dia que persiste,
quase invisível
pelo chão,
nos objetos
sobre os móveis da sala.
Varrer amanhã
o pó de hoje.
Varrer,
varrer hoje.
(E domingo quebrar nos dentes
o copo
e sua água de vidro.
Segunda, não esquecer:
varrer todos os vestígios.)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2006

Micheliny Verunschk
In Geografia Íntima do Deserto
Landy, São Paulo, 2003
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* Walt Whitman, "Canção de Mim Mesmo",
  in Folhas de Relva