Número 198 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

«A thing of beauty is as joy/ For ever, Keats exprimiu./ Mas ele próprio sentiu/ Quanto essa alegria dói.» (Bandeira) *
 


Eduardo Sterzi


Caros,

Nascido em Porto Alegre, em 1973, o poeta e ensaísta Eduardo Sterzi mora em São Paulo desde 2001. Doutor em literatura, escreveu trabalhos acadêmicos sobre Murilo Mendes e sobre a origem da lírica moderna em Dante Alighieri. Ainda como ensaísta, organizou o livro Do Céu do Futuro (Marco Editora, 2006), que reúne estudos em torno da poesia de Augusto de Campos.

Em parceria com o poeta Tarso de Melo, Sterzi fundou a revista de poesia Cacto, que circulou entre 2002 e 2004, com quatro números muito representativos do que se vem produzindo neste início de século. Como poeta, Sterzi só publicou um livro até agora, Prosa, que saiu em Porto Alegre, em 2001. Isso, sem contar os poemas que ele tem espalhados, em jornais e revistas especializadas e também na internet. Agora, o poeta anuncia que já tem prontos os originais de novo livro de poesia, intitulado Aleijão.

Poeta de feição erudita, Eduardo Sterzi exercita-se no diálogo com outros poetas. Na miniantologia aqui apresentada, há dois exemplos explícitos desses diálogos, os poemas "Outro Cacto" e "Outro Tigre". No primeiro, ele revisita o poema "O Cacto", de Manuel Bandeira, publicado originalmente em Libertinagem (1930). No outro, Sterzi retoma o célebre "O Tygre", do romântico inglês William Blake.

Também agradam a Eduardo Sterzi as construções metapoéticas, nas quais ele especula sobre as incursões do poeta — qualquer poeta — na "praia pedregosa da palavra" (veja "Música").  Nos novos poemas de Aleijão, o poeta faz uma escolha diferente. Deixa um pouco de lado as referências cultas e investe num discurso mais voltado para o cotidiano. É o que se pode notar em poemas como "Vapor e Cimento", "17h36" e "Trovoadas", todos integrantes desse novo livro.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado


 

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Quinta poética

Uma dica para os leitores de São Paulo, capital: amanhã, quinta-feira, 1º de março, realiza-se a Quinta Poética, na Casa das Rosas (Av. Paulista, 37). Os poetas convidados são Carlos Felipe Moisés, Mary Castilho, Zé de Riba e Reynaldo Damazio. O encontro começa às 19 horas e a entrada é gratuita.


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Alguma poesia

Entre fevereiro de 2006 e fevereiro de 2007 (valor do dia 24/2), o número de visitas diárias ao site Alguma Poesia, que abriga o boletim poesia.net, passou de 212 para 720
um salto de quase três vezes e meia.

No gráfico acima, pode-se observar que as visitas diárias cresceram com firmeza entre fevereiro e novembro. Em junho e julho, houve um pequeno recuo, determinado pela Copa do Mundo. Em dezembro e janeiro, meses de férias, nova queda. Em fevereiro, o número já sugere uma retomada. Nesta edição, os recebedores diretos do boletim, via e-mail, já entraram na faixa dos 2.200.

Na praia da palavra

Eduardo Sterzi

 



OUTRO CACTO

Abstrai, se alcanças, o cacto de Bandeira,
imponente em sua queda de colosso.
Abstrai toda paisagem
e, sobretudo,
toda contaminação
humana.
Pondera o cacto
pequeno,
sem flor mas também sem deserto:
cacto de vaso,
de apartamento:
cacto sem metáfora.
Em sua matriz esquálida,
mas por isso ideal,
molda, a partir de agora,
teu viver —
Tu, forma vaga,
pretensão
de aspereza.



ARGUMENTO

Dionysos pressupõe esquecimento.
Toda forma de vida exige a morte
da morte,
                e o seu desprezo.

(Sob a pedra cinza, vórtice de todo o pátio,
resiste o animal minúsculo. A tarde feroz
me aprisiona numa cama de hospital. Espero,
tranqüilo, pelo instante do gozo.)



OUTRO TIGRE

Tigre, diamante vertebrado,
nenhuma jaula poderá
reter, inflexível, a fria
fúria do teu olhar.

Nosso inútil terror de humanos
extrairá, do mundo em que vives,
a força líquida (flutíssona) de
músculos invisíveis.

Tigre, metáfora do tempo,
demônio cego da distância:
que ser, ferido de beleza,
te admira em segurança?



MÚSICA

a musa voluptuosa
pede passagem

e lhe damos —
prosa:

qualquer imagem
vale mais

que a floração sentimental de uma
rosa:

gás lacrimogêneo,
luto, melancolia,

estrofe, catástrofe,
catarse:

deposita-se, linear
(limpa e suja como um verso)
pela praia pedregosa da palavra
— esta espuma.



EXEGESE

Interpreto o teu corpo,
descerro a castanha do metacarpo
em flor, tempestade e sensação.

Ouço o martelar dos cascos
sobre o zinco da vontade.

Sinceramente, estou morto.

Poeta —

o que não tem palavras.



PREGÕES DE BEIRA-MAR

Existo-me freqüentemente.
Passeio-me por entre as gentes.
Vez em quando
      vou-me ao porto e
      colho,
      no pomar de tais pregões, multiplicáveis
peixes
de que bebo
                   a cica
oceânica, feito vinho
sacramental.



VAPOR E CIMENTO

Enquanto deslizo — serpente
    metálica — ao longo do arroio,
    a proa rasgando o
    asfalto, temente apenas
    a radares e outros
    roedores,

meus olhos se despregam
    do fluxo apático
    e, de repente,
    descobrem, ao fundo,
    formações efêmeras
    de algodão e
    reboco, vapor e
    cimento — o assim
    chamado «horizonte» —
    morrendo em rosa e
    cinzento;

poderia ser o fim do mundo,
    mas aqueles óculos
    mudaram a percepção
    de tudo, e ela pôde,
    ao meu lado, mesmo
    assustada, sorrir,
    embora sua fala,
    no rapto do instante,
    cessasse abrupta, à espera
    de alguém — tigre ou
    anjo — que, munido
    de ferramentas apropriadas,
    nos arrancasse
    do cerrado cipoal
    das ferragens;

poderia ser o fim
    do mundo, mas,
    hóspede perpétuo
    da mais ímpia
    masmorra
    (onde o chão
    morde o teto)
    do palácio
    gasoso
    das lembranças,
    fantasio-me liberto,
    preso apenas a
    um que outro
    relâmpago: o prego,
    áspero de cimento,
    cravado no pé esquerdo;
    o primeiro golpe
    da adaga (a vítima
    sobre a pia,
    ao lado de uma
    privada); o lustre
    de inúteis tentáculos
    rebentando no ventre
    da sala; tua última
    palavra.



17H36

A tarde é ouro falso
vazando para o quarto.

O sangue das cobertas,
coagulado, não veda

as janelas. Dormir,
ainda que por um triz,

adianta o morrer: peixe
arpoado pela luz.



TROVOADAS

Estão de novo arrastando as trovoadas
No andar de baixo minha mãe de pantufas
cuida que se ouça pouco
não mais que o necessário

É tempo de nascer da morte esta fresta
criatura de esgueira
Tebas tem sete portas
que são bocas de mil dentes
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Eduardo Sterzi
•  "Outro Cacto", "Música", "Argumento",
    "Outro Tigre", "Música", "Exegese", 
    "Pregões de beira-mar"
    In Prosa
   
IEL/CORAG, Porto Alegre, 2001
•  "Vapor e Cimento"
    revista Cacto, n. 1
•  "17h36", "Trovoadas"
    revista Inimigo Rumor, n. 17
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* Manuel Bandeira, "Keats",
  in Mafuá do Malungo (1948)