Alexandre Marino
Caros,
Mineiro de Passos, Alexandre Marino nasceu em 1956. Praticante da poesia desde
cedo, fundou na adolescência, em parceria com amigos, a revista Protótipo,
que teve sete edições em três anos. Depois, o jovem de Passos mudou-se para Belo
Horizonte, onde fez os cursos de jornalismo e publicidade. Lá, entre 1979 e
1981, publicou seus dois primeiros livros de poesia: Os Operários da Palavra
e Todas as Tempestades. Nessa época o poeta fez bem o estilo consagrado
nos anos 70, vendendo seus livros em bares, restaurantes e filas de teatro.
Em 1982, Marino transferiu-se para Brasília, onde passou a trabalhar em jornais.
Entrou, então, num período de jejum poético, quebrado apenas em 1999, com o
lançamento do livro
O Delírio dos Búzios, publicado pelo seu
próprio selo, Varanda.
Seu livro mais recente é Arqueolhar, do qual extraí a amostra de textos
apresentada neste boletim. Nesse volume, Alexandre Marino lança uma mirada
poética para sua infância. Como o título sugere, é um olhar arqueológico, uma
revisitação lírica do passado.
Lá está o menino, na cidade do interior, cercado de tias e todo o universo
familiar perdido entre salas e cozinhas mineiras. Lá está o menino, observando
as pedras do regato e inventando truques da imaginação na magia dos quintais.
Há, entre os escritores mineiros, quase uma tradição de sair em busca do tempo
perdido. Talvez os nomes mais fulgurantes dessa rica tradição sejam o
juiz-forano Pedro Nava e o itabirano Carlos Drummond de Andrade. Mas a tendência
se mantém. É o que mostra Alexandre Marino, com seu Arqueolhar. É também
o que se pode observar em parte dos poemas de Percurso da Ausência, de
Gilberto Nable, poeta apresentado no
boletim n. 190.
Visite o site do poeta Alexandre Marino em:
www.abordo.com.br/marino
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
DRUMMOND CORROMPIDO (2)
No boletim Drummond: 100 anos, de
25/10/2002, escrevi uma nota intitulada "Drummond corrompido", na qual
denunciava um exemplo de descaso editorial. Começava assim: “Atenção,
drummondianos: cuidado com o livro Carlos Drummond de Andrade - Poesia, volume
118 da Coleção Nossos Clássicos, da Agir Editora. Esse voluminho didático excede
a cota de erros aceitáveis, em qualquer critério que se queira aplicar.” Mais
adiante, informava: “o livro traz 45 poemas — 21 contêm erros, em certos casos
até cinco no mesmo texto.” E concluía: “Esse desleixo editorial é terrivelmente
lamentável, em especial quando se trata de obra didática. E o erro se
multiplica, pois o voluminho já está na 3ª reimpressão da 2ª edição. Fiquem de
olho.”
Agora, por acaso, descobri que a Agir passou às mãos da supereditora Ediouro,
também dona da Nova Fronteira e da Relume-Dumará. A empresa está relançando a
coleção Nossos Clássicos. Não pude constatar se o volume dedicado à poesia de
Drummond já foi reeditado (o site, www.editoraagir.com.br, não é dos mais
completos). Mas espero que, se o fizerem, não esqueçam a faxina nos originais da
2ª edição. Fiquem de olho, mais uma vez.
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Arqueologia do olhar
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Alexandre Marino |
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O ESTRANHO
Não passas de um intruso nesta manhã de sol,
mesmo que mil olhos abandonem os espelhos
e se acerquem de teu desespero inominado.
Inóspito é o mundo a construir-se à tua volta.
São anticorpos a expulsar o objeto estranho
porque todos os tempos são indecifráveis.
Entregam-te o caos para que o ordenes,
o circo onde duelam felicidades e tragédias,
destroços de vidas para que as reconstruas.
Não há volta ou refúgios para a viagem,
mas um horizonte trancado a chave.
Ali interromperam a tua eternidade.
RECEITA
No início, nada além de caos e fome
e uma rua que jorrava diante da janela.
Trouxeram farinha de trigo, açúcar, ovos,
que mãos remotas entornaram na gamela.
O mundo era um deserto sem destinos,
só um pouco de sal, bicarbonato, canela.
Havia ainda óleo de milho e margarina
para que a história se tornasse eterna.
Avó e tias trabalhavam com esmero
invocando o poder divino das essências
tempero do tempero de tantas iguarias;
O forno exalava calor e esperança,
que na mesa da cozinha se servia
para adoçar os abismos da infância.
PEDRA DE AMOLAR
Uma pedra
exilada de seu berço
— qual regato? Que fundo de rio?
Que borda de serra? —
veste roupa, conquista um nome
e nova missão sobre a terra:
dar vida à lâmina
que imortaliza a laranja
com o perfume do sumo.
As grosseiras mãos de um velho senhor
preparam o canivete
para o corte do fumo,
e a pedra
permanece desperta
sem cansaço ou ardor.
Testemunha silente,
a pedra oferece a pele
ao renascer da faca
e observa, alheia,
a chuva no terraço, goteiras na sala,
o sol a queimar as samambaias
e as lâminas cegas de velhice,
sobreviventes
ao homem trêmulo
e impotente,
que tenta afiar o olhar
na pedra de amolar.
Um dia, nos escombros do futuro,
em certo altar abandonado,
entre paredes e entulhos
de um alpendre, um terraço,
ossos, restos, rastros sobre a terra,
irremediavelmente oculta
ou apenas insepulta,
lá estará a pedra
insone,
a recordar, sem saudade,
um regato, um leito de rio,
uma borda de serra.
O PIANO
Dorme um piano
entre as cinzas do porão,
onde os gatos
e suas ninhadas,
indiferentes à escuridão
ou qualquer sinal de morte,
caminham sobre o teclado
e descobrem o imponderável
(como se ordenassem:)
acorde!
ESPERA
Vê, homem, tua face ao contrário,
as mãos cruzadas sobre a alma,
e o olhar de desamparo
na estrada às tuas costas.
O horizonte, jaula circular,
esconde a linha do trem
que se perde, devagar,
na paisagem doméstica
criadouro de tuas feras.
As montanhas guardam sonhos de velhice,
imortalidade têmpora.
Que futuro é esse,
que viaja entre pedras e arbustos
numa estrada abandonada?
Ou é apenas uma nuvem
em forma de palavra?
Ouve, homem, o pensamento distante
sobre tuas calças curtas,
joelhos ralados nessas pedras,
a plataforma vazia onde o silêncio espera.
A chuva ameaça teu bigode
desenhado a lápis-cera.
MAGIAS
Lembro-me da criança
e seus poderes mágicos.
Dava conselhos ao cão
pintava a lua de verde
e fazia jorrar das goiabas
lágrimas de tangerina.
Cavalgava um dragão invisível
e movia com o pensamento
as pedras do jardim.
Ensinou o curió a olhar as horas
e dublar o cuco ao meio-dia.
Inventou heróis, deuses, elefantes alados,
violeiros que cantavam ao abrir-se uma gaveta.
Da cestinha de costura resgatou um coelho
que fazia sorrir a tia em noites de pesadelos.
No fundo da horta, junto ao muro,
enterrou meia dúzia de palavras
a que daria novos sentidos
em incerto futuro.
Escondeu à sombra um arqueolhar distante,
uma dezena de objetos desimportantes,
um talismã, uma saudade,
o mapa do tesouro
e a fórmula secreta da magia.
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