Número 204 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 11 de abril de 2007 

«Vésper caiu cheia de pudor na minha cama» (Manuel Bandeira) *
 


Andityas Soares de Moura



Caros,

Poeta, tradutor, advogado e professor da UFMG, Andityas Soares de Moura é mineiro de Barbacena, da safra de 1979. Estreou em 1997 com o volume Ofuscações, uma edição do autor. Publicou também  Lentus in Umbra (2001), Os enCantos (2003) e Fomeforte (2005). Como tradutor, um de seus trabalho é o volume Isso (Ed. UnB, 2004), do poeta argentino Juan Gelman, vertido para o português em cooperação com Leonardo Gonçalves. Além dos trabalhos citados, Andityas Soares de Moura tem colaborado
em revistas e jornais, com textos poéticos e ensaios.

Os poemas reproduzidos ao lado pertencem todos a Fomeforte, a obra mais recente do autor. Conforme bem caracteriza o poeta Glauco Mattoso, "Andityas Soares de Moura, um atípico goliardo hodierno, debate-se entre a medievalidade e modernidade, recolhendo os cacos de filosofia, pintura ou música entre as pedras do caminho barroco desbarrancado".

Essa oscilação entre o moderno e o arcaico, com traços concretistas namoriscando o mais arrevesado latinório, parece ser de fato a pedra de toque da poesia de Andityas ou, pelo menos, dos poemas reunidos em Fomeforte. Uma poesia que passa por cirandas de tigresas amargas, vislumbra a paixão pela pedra, colhe rochas em Ouro Preto e se cala com o sinuoso silêncio dos deuses.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



 

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IARARANA NO RIO

Uma dica para quem estiver no Rio de Janeiro nesta quinta-feira, dia 12/4. Os editores da revista baiana de literatura Iararana estão lançando os números 12 e 13 da publicação, que vem se tornando uma das mais importantes hoje no país. Anotem:

Data: 12 de abril, quinta-feira
Hora: 19 às 21
Local:
Livraria Letras & Expressões
Av. Ataulfo de Paiva, 1292 loja C
Leblon - Rio de Janeiro
 

O silêncio dos deuses

Andityas Soares de Moura

 



III - CIRANDA

trancaste a chama
entre os quartos
inumeráveis
da mansão essencial

               balbuciam contigo
               alguns fantasmas
               — mesmo eles duvidam
               da vida

               — duvidam
               da morte, sobretudo

lamentos
de tigresas amargas
espalham-se
pelo chão

                      lá fora
                      encontrarás a
                      identidade
                      completa

o sossego de mil mundos
encastela-se em ti

                      e tudo parece
                      lunar

 


4. (peroratio)

afasta-te das pessoas
procura o paralelepípedo
a doçura das linhas
— proporção —
o convencimento
te alcançará em
qualquer esquina
e com uma das mãos
escondida dar-te-á a
paixão
pela pedra



BRISA

surgiu

e foi como um raio

um golfo

um sopro de estrelas

tritões azuis
no filtro de barro         cotidiano
                                          relicário de
                                              nossas
                                              mágoas

maravilha de
abençoar teu
sono com um
cobertor a mais

na noite fria de novembro



TRÊS SONHOS FRIOS

1.
construir
          a luz
                é respiração

            opaca em teu
            desejo, golpeia: transe

2.
exercício da pesca
                  obstrução
                  dos canais
                  intensos da
                              faringe

        drama ártico
        do qual não
        s'escapa
                         com a inocência
                         da primeira infância

3.
por um longo
segundo,
o aqueduto das palavras

agora, fendes os olhos,
                  baixos,
                  garça

 

QUARTA LEITURA: CONFIDÊNCIA

Ouro Preto

muito bem

             sem mitos

             sem casarios

cidade calcada

aqui, se colhe
rocha

    pavio

             enxada
    porta de grama

aqui, alguém
esquece o nome

— às vezes, tenho
visões...

aqui  aqui

— d'outras vezes,
sons melodiosos

cidade-pentagrama

teus centuriões aguardam-te
além-mar

 

GEOGRAFIA

cargas de luas
                   ares
                      sob
                      o
                      creme

                             pacífico
                             fim de tarde
                             em julho

rodopiam mosquitões

cheiro abafado, corrosivo,
de mato
fechado                                     é
umas alturas                           como
salpicam                                 se te
no horizonte                         falassem:
                                             dorme

chumbo
vermelho

o mal-estar enorme das montanhas de Minas

                                            dorme

 

CHUVA NO MORRO

cai finíssima

sem tempestade

o atrito verde-oliva
enegrece as folhas

(duro açafrão,
duro cloro, batismo
inalienável
dos lagos de lava)

                 molhados,
                          ressurgem
                                      os ares

                 circundam
                       o morro

com                                                    a lama
   fragmentos                                  viscosa
           coxas                              córrego
                dormir                  amanhã
                     barulho         haverá
                                 sol

            sinuoso é o silêncio dos deuses

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Andityas Soares de Moura
In Fomeforte
Crisálida, Belo Horizonte, 2005
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* Manuel Bandeira, "A Estrela e o Anjo",
  in Estrela da Manhã (1936)