Número 205 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 18 de abril de 2007

«Na família o envelhecer é côncavo.» (Ana Cecília de Sousa Bastos) *
 


Alberto da Costa e Silva


Caros amigos,

Poeta, diplomata e africanista, Alberto da Costa e Silva nasceu em São Paulo, em 1931, filho do poeta simbolista [Antonio Francisco] Da Costa e Silva (1885-1950). Estreou na poesia em 1953 com o livro O Parque e Outros Poemas. Continuou a produzir e publicar nas quatro décadas seguintes. Em 2000 foram lançados seus Poemas Reunidos, contendo toda a sua produção até aquele momento.

Uma das principais matérias poéticas de Alberto da Costa e Silva é a memória. Desde seu primeiro livro, o poeta dirige atenção especial à infância e ao tempo passado. Não se trata de um olhar nostálgico, nem seus versos se afinam num diapasão de lamentar glórias pretéritas. Na poesia de Alberto da Costa e Silva o olhar para trás é mais um exercício filosófico de pensar a vida. E — socorro-me aqui de uma das idéias caras a Jorge Luis Borges — o que é a vida senão o que já passou?

Considere-se, por exemplo, a força lírica do poema "Bilha", no qual o poeta dialoga com o povo, mediante suas lembranças da infância, vivida no Ceará: "e ondas de um rio que são choros de parto, / breve esperar, sentido amor, memória / da meninice em tuas mãos que moldam / casa, banco, alguidar, bilros, cancela, / anjos toscos, na fome de teu corpo".

O tempo é, realmente, uma questão-chave para Alberto da Costa e Silva. Uns organizam antologias ou obras reunidas pelo conteúdo original dos diversos livros. É o formato mais comum. Outros, inventam ângulos novos. Drummond, em sua Antologia, aproximou, sob grandes temas, poemas de datas diversas. Alberto da Costa e Silva reuniu seus poemas por décadas. Não os decênios do calendário, mas os de sua vida. Assim, o volume Poemas Reunidos se divide em blocos intitulados "Poemas dos Vinte Anos", "Poemas dos Trinta Anos" etc. até "Poemas dos Sessenta Anos".

Outra faceta que se destaca na obra poética de Alberto da Costa e Silva são os textos dedicados à convivência entre amigos e na família. Relevo especial têm os poemas nominalmente dedicados a Vera, esposa do poeta.

A poesia de Alberto da Costa e Silva não contém odes nem momentos bombásticos. Bebida suave, ela pressupõe que o leitor a aprecie em pequenos e bem saboreados goles. É uma poesia do tempo, trabalho de um homem que manteve sempre a meninice nas mãos.

                        •

Vale destacar aqui o trabalho de Alberto da Costa e Silva como ensaísta e africanista. É da autoria dele, por exemplo, o volume Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos (Nova Fronteira, 2004). Trata-se da história de um baiano, negro, que migrou para o Benin no início século XIX e se tornou riquíssimo com o tráfico de escravos. Seu apelido, Chachá, tornou-se até um título de nobreza. Alberto da Costa e Silva é também autor da biografia Castro Alves: Um Poeta Sempre Jovem (Cia. das Letras, 2006).


Um abraço,

Carlos Machado

 

                     • • •


A POÉTICA DE
ANA CRISTINA CESAR

Dica para quem mora ou está em São Paulo. Na próxima terça-feira, 24 de abril, a poeta e ensaísta Annita Costa Malufe lança seu livro Territórios Dispersos: A Poética de Ana Cristina Cesar. Anote:

Data: 24/4, terça-feira
Hora: 19h00
Local: Bar Canto Madalena, Rua Medeiros de Albuquerque, 471
(em frente ao Sacolão da Vila Madalena), tel. 11-3813-6814
 

A meninice nas mãos

Alberto da Costa e Silva

 



A BILHA

Assim o barro, em tuas mãos pequenas
e machucadas, ergue um vôo, povo:
é um ai de terra, sem nenhum tormento,
um ai de rir e flora, de macio coito
de porcos, quase asa de garça, quase
paina de jatobá, esta moringa aberta
ao frescor que há no sol, charque, avoante,
forma de prenha mulher, quartinha, pote.

Inverso estio moldas em terra e água,
cor de palha e de mel, meu povo, sem distâncias
de serras com que sonhas junto ao cacto,
mas que entorna a noite de seu bojo.

Se o colas ao rosto, vêm as brisas
dos regatos e à boca chegam barro
e ondas de um rio que são choros de parto,
breve esperar, sentido amor, memória
da meninice em tuas mãos que moldam
casa, banco, alguidar, bilros, cancela,
anjos toscos, na fome de teu corpo.

                    De "Poemas dos Trinta Anos"



SONETO

Cerâmica e tear: as mãos trabalham
e constroem o amor num fim de tarde,
como jarro de rústico gargalo
ou fino pano arcaico. Sobre o barro

põem desenhos mais jovens de suaves
moças dançando e restos de paisagens
da infância e da montanha: perfis núbios
sobre o vermelho poente desse jarro...

E a substância mais tímida do sonho,
nas mãos do artesão, faz de seu pranto
e cismas, riso e ardor, tecido raro

em que se borda uma novilha, bela
como o beijo em setembro, em que se fez
o amor com outro fio e um outro barro.

                    De "Poemas dos Vinte Anos"



A RICARDO REIS, NO MAR DA GALILÉIA

Só dizem os deuses o que logo esquecem,
mas o jogo do céu é amplo e reto,
e cada lance é um coração aberto:

nele não dorme o que se fez desperto,
o eterno é agora e em si mesmo morre,
nunca houve rumo e todo sempre é incerto.

          — Não creio, e rezo.

                    De "Poemas dos Quarenta Anos"



BREVE SOLILÓQUIO NO JARDIM DAS TULHERIAS

O que quer este menino a andar de bicicleta,
senão lembrar-me do que fui? Senão, tonto de
                                                      [ riso,
entre pombos e pardais no chão ensolarado,
                                                      [ fingir-me?

Não aceito o ter sido. Nem me quero menor
no coração que guardou o assombro e a fábula
de tudo o que viveu como um sonho escondido.

Os dias me cobraram o que era infinito.
E, se agora persigo o pedalar do menino,
é porque sei que sou o final do seu riso.

                    De "Poemas dos Cinqüenta Anos"



SONETO A VERA

Na relva iluminada pelos pássaros,
reclinas o teu corpo. Separada
dos dois lados da noite, quando o sol
recolhe ou desenrola as suas velas,

do touro ao meio-dia, e das fases
da lua, e do que muda e se disfarça,
e da grama e das aves que ali pastam,
respiras, te espreguiças, alinhavas

o teu ser contra o céu, enquanto passam
o chuviscar, o abrir do sol, os galgos
do verão e do inverno, as estações

da manga e do caju. E vais, deitada,
como um barco na praia, alheia ao tempo
a se bordar no bastidor da tarde.

                    De "Poemas dos Quarenta Anos"



O AMOR AOS SESSENTA

Isto que é o amor (como se o amor não fosse
esperar o relâmpago clarear o degredo):
ir-se por tempo abaixo como grama em colina,
preso a cada torrão de minuto e desejo.
Ser contigo, não sendo como as fases da lua,
como os ciclos de chuva ou a alternância dos
                                            [ ventos,
mas como numa rosa as pétalas fechadas,
como os olhos e as pálpebras ou a sombra dos
                                            [ remos
contra o casco do barco que se vai, sem avanço
e sem pressa de ausência, entre o mito e o beijo.
Ser assim quase eterno como o sonho e a roda
que se fecha no espaço deste sol às estrelas

e amar-te, sabendo que a velhice descobre
a mais bela beleza no teu rosto de jovem.

                    De "Poemas dos Sessenta Anos"
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Alberto da Costa e Silva
In Poemas Reunidos
Nova Fronteira/Biblioteca Nacional,
Rio de Janeiro, 2000
_______________
* Ana Cecília de Sousa Bastos, "Balanço",
  in Uma Vaga Lembrança do Tempo (1999)