Número 207 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 2 de maio de 2007 

«Orfeu, reúne! chama teus dispersos / e comovidos membros naturais, / e límpido reinaugura o ritmo suficiente» (Drummond) *
 


Sônia Barros



Caros amigos,

Escritora experiente, com sete livros de ficção já publicados — todos na seara infanto-juvenil —, a paulista Sônia Barros (Monte Mor, 1968) publica agora sua primeira coletânea de poesia. Trata-se de Mezzo Vôo, que sai esta semana pela editora Nankin.
 
 A poesia que Sônia Barros oferece em seu Mezzo Vôo é algo doce, de um lirismo delicado, e, ao mesmo tempo, inquieto, de uma  consciência que não aceita comodamente as minguadas  ofertas do mundo. É o que ela mesma anuncia no poema "Origens": "Persigo o sonho / do vôo / desde sempre, / desde antes / de nascer". Esse vôo funciona como um fio condutor que perpassa todo o livro. Ele reaparece, interrompido, em "Herança Paterna" e se manifesta, ainda, de diferentes maneiras, em vários outros poemas.

Dois pontos me chamam a atenção na poesia de Sônia Barros. Um é a capacidade que ela exibe de, com duas ou três palavras, delinear um quadro bem preciso. Um exemplo está em "Origens", parte 2: "Quartinho / (penico, lamparina, espiriteira)". Não é preciso mais nada para desenhar na mente do leitor o ambiente que a autora deseja transmitir.

O outro ponto — que, pensando bem, talvez seja uma extensão do primeiro — é a economia de meios com que a poeta consegue se expressar em determinados momentos. Nesse caso, cito o enxutíssimo poema "Epifania":
"Ceva / e espera: / o vôo da voz virá". Aqui, além de tudo, há um excelente jogo sonoro. Nos dois primeiros versos, a assonância entre "ceva" e "espera". No último, a aliteração em V.

Que Sônia Barros seja bem-vinda à poesia. Nós, leitores e amantes da poesia, ficamos aqui torcendo para que sua trajetória seja um ilimitado exercício de vôo pleno.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•
 

MEZZO VÔO - LANÇAMENTO

Dica para os paulistanos: neste sábado, Sônia Barros está lançando seu Mezzo Vôo. Anote aí:

Data: sábado, 5 de maio de 2007
Hora: a partir das 17h00
Local: Paralelo 12:27 Bar
           Rua Joaquim Távora, 1227
           Vila Mariana – São Paulo
           Tel. (11) 5579-1227

O vôo da voz

Sônia Barros

 



ORIGENS

             para Maria Aparecida Rangel Murbach


1

Persigo o sonho
                    do vôo
desde sempre,
desde antes
de nascer.

Sobrevoava abismos e subia
rumo às nuvens
(bracinhos abertos)
                    no céu dos sonhos
de minha mãe:
mulher que não me gerou
mas amparou-me
                              na queda
e cultivou minhas asas.

Essa mulher da terra
também aprendeu
a alçar vôo.


2

Cidadezinha,
pracinha,
bibliotecazinha.
Dentro delas,
o castelo:
                       livro-asa
livro-água
nas mãos em concha
da menina lagarta que sonhava
borboletas cor-de-nuvem.

Quartinho
(penico, lamparina, espiriteira).
Dentro dele,
                                 estrelas
nasciam dos lábios cansados da mãe
— de olhos fechados pelo peso da lida —
                                 voavam
e enchiam a boca sedenta de asas
da menina
sempre acordada.



HERANÇA PATERNA

Não nasci sem pai:
ele esperou até que eu nascesse.

Depois,
ao constatar o sexo frágil
de sua quarta frágil-filha-mulher,
ele, o homem forte,
se foi.

Como herança,
deixou-me esta aptidão
para vôos interrompidos:

                                eterno fugir
de onde nunca estivemos.

 

CAÇADA

                   para Donizete Galvão

Tiro certeiro
                      no cerne
da coisa
que se deseja comer viva.

Ave atingida
no exato centro
— âmago —
de onde escorre
o lodo
o turvo líquido
o sangue
                     até que se chega ao fundo
do límpido poço
— coração —
de onde jorra a água
que pode, enfim, ser
engolida
                    avepalavra
ainda viva.



EPIFANIA

Ceva
e espera:

o vôo da voz virá.



SIMULACRO

A boca sorri
como se tivesse asas
e águas corressem:
sorriso houvesse, ainda,
no leito,
por dentro.

Não há mais
                     rio
secou.

O que se vê
do lado de fora:
                    miragem
que aflora
feito flor desenhada à força
— pedaços de traços —
em cacos.
                   (vôo amputado no ar

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Foto: Mario Rui Feliciani

Sônia Barros
•  In  Mezzo Vôo
   
Nankin, São Paulo, 2007
______________
* Carlos Drummond de Andrade, "Canto Órfico",
  in Fazendeiro do Ar (1954)