Número 212 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 6 de junho de 2007 

«Gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, ter deve ser a pior maneira de gostar.» (José Saramago) *
 


Francisco Carvalho


Caros,

Tímido, retraído, ele detesta posar para fotos e é avesso ao burburinho da mídia. Seu instrumento de entender e refletir o mundo é a poesia. Nela, o cidadão pacato e arredio despe a capa da timidez e comete proezas espantosas. Invectiva os mísseis atômicos, conversa à vontade com Camões, Drummond e Walt Whitman e desce aos infernos na companhia de Dante. Ousado, discorre com a mesma desenvoltura sobre o fim dos tempos e a "sensualidade das conchas" no corpo da amada.

Esse discreto titã é o poeta Francisco Carvalho, cearense de Russas, nascido em 1927. Já o apresentei aqui, há mais de dois anos, no boletim n. 102. Agora, voltamos a encontrá-lo.

Até hoje, o poesia.net nunca  retornou a um poeta já "boletinizado". A única exceção foi feita para Fernando Pessoa. Mesmo assim, o autor das "Ficções do Interlúdio" apareceu uma vez como os três principais heterônimos (Caeiro, Reis e Campos) e outra como ele mesmo.  Pessoa são muitos. De todo modo, já há algum tempo pensei em retornar a poetas já enfocados — para, por exemplo, atualizar seu perfil com obras lançadas após o primeiro boletim.

Então começamos agora com Francisco Carvalho. Um dos motivos é que, no primeiro boletim a ele dedicado, havia poemas de apenas um de seus livros, Quadrante Solar (1983). Neste, a seleção se faz com base em textos de Memórias do Espantalho, de 2004, que contém textos de 19 livros do autor, e de Centauros Urbanos, de 2003.

Mas há também outro motivo: neste 11 de junho, o poeta completa 80 anos. Oito décadas de vida, mais de vinte títulos de poesia construídos em modesto silêncio. Atento observador do bicho-homem, Francisco Carvalho, em seu extenso percurso poético, já contemplou os mais diversos temas. Na amostra de textos ao lado, escolhi poemas que dão notícia de algumas facetas do poeta. Uma delas é a do
ser que observa  a si mesmo ou tenta desvendar as maranhas da existência humana. Essa faceta está em poemas como "Estudo", "Retrato para Ser Visto de Longe",  "Fingimento" e "Herói".

Em "Recato" o poeta situa seu proverbial recolhimento e reconhece, sem ilusões, o pouco caso com que se trata a poesia. "Todos estão demasiadamente distraídos / e preocupados com as precárias / liberdades do corpo e as metamorfoses da alma". Aliás, a postura retraída do poeta também está no "Retrato para Ser Visto de Longe". É como se ele pintasse o retrato, que fica valendo para os que o lêem, já que ele não se dá a conhecer de perto.

Uma faceta não das mais destacadas mas também presente na obra de Francisco Carvalho é o lirismo amoroso. No livro Centauros Urbanos, ele dedica a esse tema a parte final, batizada como "Argila Erótica". Vêm daí os poemas 8 e 14. No primeiro, predomina o tom reflexivo. As amadas que se vão são como "sombras de pássaros na água". O outro é uma declaração de amor à moda cartesiana: "Penso: logo tua chama / incendeia o meu pensamento".

"Calafrio" é um texto breve que tenta, numa frase única, descrever o fenômeno amoroso. No poema "As Curvas de Eros", de 1982, o poeta considera o amor diante da passagem do tempo. "De repente o sexo / é uma palavra sem nexo".

Uma faceta intrigante na poesia de Francisco Carvalho é a das rimas infantis, textos que têm o espírito dos limericks ingleses,  explorando o bom-humor dos disparates e a brincadeira irresponsavelmente deliciosa com as palavras. No caso do poeta cearense, o fio condutor são os paralelismos e, principalmente, a rima. Há numerosos textos com esse tratamento em sua obra. Um exemplo, mostrado ao lado, é a "Balada Trágica", na qual cada verso cita um dia da semana e um personagem diferente. E a única atividade de todos os sete personagens é morrer.

Por fim, os dois últimos poemas representam a face metalingüística do trabalho do poeta. "Engenharia do Poema" é de 1979; e "Dialética do Poema", de 2002. Em ambos o poeta procura resumir o fazer poético na fórmula "isso é aquilo".  Esses não são os únicos textos do poeta que encerram essa mesma tentativa, para a qual certamente não existe uma palavra final. Portanto, valem sempre novas variações. "Fazer o poema / é agarrar o agora / para pô-lo inteiro / dentro da metáfora." Ou então: "Fazer um poema / não é dizer coisas profundas. / É ver as coisas como as coisas não são."



Ao poeta Francisco Carvalho nosso muito obrigado pela poesia. Que ele receba, em sua profunda modéstia, a nossa saudação.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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MAIS FRANCISCO CARVALHO

Veja mais poemas de Francisco Carvalho nos boletins:

- poesia.net 102

- poesia.net 287

 

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LANÇAMENTOS

A temporada anda pródiga em lançamentos aqui em São Paulo. Nos próximos dias, mais três livros chegam às prateleiras.


• Paulo Ferraz
   - De Novo Nada
   - Evidências Pedestres

O poeta Paulo Ferraz faz um lançamento duplo: os livros de poesia De Novo Nada e Evidências Pedestres. As obras saem pelo selo Sebastião Grifo, também criação do autor.

Data: 11 de junho, segunda-feira
Hora: 19h00
Local: Feira Moderna 
Rua Fradique Coutinho, 1246
Vila Madalena
Tel: (11) 3812-7431, 3032-2253



• Virna Teixeira
   - 8 Femmes

A poeta Virna Teixeira apresenta um livro coletivo, que é a segunda  publicação de seu blog, o Papel de Rascunho. A coletânea 8 Femmes reúne poemas de Ana Maria Ramiro, Ana Rüsche, Andréa Catrópa, Marília Kubota, Silvana Guimarães, Sílvia Chueire, Simone Homem de Mello e Virna Teixeira (organizadora).

Data: 12 de junho, terça-feira
Hora: 20h00
Local: Academia Internacional de
           Cinema (AIC)
Rua Dr. Gabriel dos Santos, 142
Higienópolis
Tel: (11) 3826-7833


 

Retrato visto de longe

Francisco Carvalho

 

 

ESTUDO

Subitamente descobrimos o acaso
na nuvem que passa pelo pássaro
ou no pássaro que soturnamente percorre a nuvem.

De repente aprendemos a flor das coisas
e os seus movimentos na paisagem.
De repente trocamos a imagem pela paisagem
a palmatória pela parábola.

De repente descobrimos que os espelhos nos evitam
que o amanhã pertence aos outros
que da janela somos observados
por super-homens de celulóide.
De repente é o metal do amor que silencia
no coração onde tudo é paisagem.

Subitamente compreendemos
que as palavras envelhecem com os homens
que o amor também envelhece
quando as palavras envelhecem.

                    De Os Mortos Azuis (1971)



RETRATO PARA SER VISTO DE LONGE

Sou um ser, o outro é metade
que não sabe de onde veio.
Sou treva, sou claridade.
Solidão partida ao meio
e entre os dois a eternidade.

Sei quem sou, não me conheço.
Parado, estou sempre indo
para um país sem regresso.
Sou fonte e estou me esvaindo,
fluir sem fim nem começo.

Coração partido ao meio,
pulsando em cada metade.
O lirismo do espantalho
a espuma do devaneio.
Entre os dois a eternidade.

                    De Pastoral dos Dias Maduros (1977)



FINGIMENTO

Não adianta fingir
que o tempo não passou
com os seus pendões vacilantes
de cortejo fúnebre.

Fingir que o rosto não foge
ao sarcasmo dos espelhos.
Que os deuses não zombam
do sorriso trincado dos velhos.

Fingir que ainda restam
vestígios da antiga chama.
— Sob o desenho das rugas
só o silêncio nos ama.



HERÓI

Herói não é o que vai irrigar as lavouras
da morte nos campos de batalha.
Não é o que volta das trincheiras minadas
de explosivos com medalhas no peito
mutilações no corpo e na alma.

Herói não semeia tulipas de sangue
ramalhetes de napalm e rosas de átomo.
— Não é o aventureiro que fez xixi na lua.

— Herói é o que vai todas as tardes à padaria
mais próxima buscar o pão ainda morno
para testemunhar o mistério da vida.



RECATO

Guarda o teu poema no fundo de uma gaveta.
Que as traças o devorem sem deixar
o mais débil vestígio de tua humanidade.

O que pensas do amor, da vida e da morte
não interessa a ninguém.
Todos estão demasiadamente distraídos
e preocupados com as precárias
liberdades do corpo e as metamorfoses da alma.

Digam o que disserem os graves e os cínicos
os bêbados e os bastardos
os que te cumprimentam todas as manhãs
com mentirosa cordialidade...
— Guarda o teu poema no fundo de uma gaveta.



ARGILA ERÓTICA

8

Um dia percebemos que as amadas se evaporam
no ar como se nunca tivessem existido.
Sombras de pássaros na água

elas emigram para lugares distantes
ou talvez para alguma estrela
dessas que flamejam nos trapézios do céu.

As amadas passam como o vento
são inconstantes como as brisas que derrubam
as folhas mortas de um pomar.

Semelhantes a esses gatos de pelúcia
que nos arranham com seus bigodes de mercúrio
e vão-se lambuzar no pires de leite.

As amadas, quando vão embora,
deixam apenas a memória do perfume
como um punhal cravado em nosso peito.


14

Penso: logo tua chama
incendeia o meu pensamento
logo me entregas
as pálpebras da orquídea submersa
logo o dia amanhece
em todas as conchas do teu dorso
logo os meus olhos
esvaziam o cálice de tua nudez
logo te aproximas
coroada de algas e de espumas.
Penso: logo existes
metamorfose da rosa em meu sangue.

                    De Centauros Urbanos (2003)



AS CURVAS DE EROS

De repente nos damos conta
de que o rosto
foi comido pela solidão
fera insaciável.
De repente nos debruçamos
sobre o adeus
e os caminhos da infância extraviada.
De repente um desejo
ladra em vão
às matilhas da lenta madureza.
De repente mastigamos
palavras amargas
palavras cujo sumo foi espremido
pelos dedos da morte.
De repente voltamos a acender o fogo
azulado do mito.
De repente a mentira
põe os seus ovos de ouro em nossa algibeira.
De repente o coração
é uma serpente enroscada nas curvas de Eros.
De repente o sexo
é uma palavra sem nexo.

                    De Rosa dos Eventos (1982)



CALAFRIO

O amor
é um calafrio
que nos percorre
o corpo
e deságua
na foz
de um secreto rio.

                    De As Verdes Léguas (1979)



BALADA TRÁGICA

A que se chamava Raimunda morreu na segunda
A que se chamava Vanessa morreu na terça
A que se chamava Marta morreu na quarta
A que se chamava Jacinta morreu na quinta
A que se chamava Violeta morreu na sexta
O que se chamava Bernardo morreu no sábado
O que se chamava Deolindo ressuscitou no domingo.

                    De Barca dos Sentidos (1989)



ENGENHARIA DO POEMA

Fazer o poema
é estar em conflito
com o sangue que corre
nas veias do mito.

É sair do corpo
e estar de permeio.
O punhal na bainha
do teu devaneio.

Fazer o poema
é estar na palavra.
Como a efígie do morto
na faca amolada.

Fazer o poema
é agarrar o agora
para pô-lo inteiro
dentro da metáfora.

                    De As Verdes Léguas (1979)



DIALÉTICA DO POEMA

Fazer um poema
não é dizer coisas profundas.
É ver as coisas como as coisas não são.

Fazer um poema não é viajar no espelho.
É ir à procura do rosto do homem
perdido na escuridão.

É descer às raízes do sangue e do mito.
Fazer um poema é estar em conflito
com os dedos da mão.

                    De O Silêncio é uma Figura Geométrica (2002)

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Francisco Carvalho
•  "Retrato para ser visto de longe", "Estudo", "As curvas de Eros",
    "Calafrio", "Balada trágica", "Engenharia do poema"
    e "Dialética do poema"
    In Memórias do Espantalho — Poemas Escolhidos
   
Imprensa Universitária da UFC, Fortaleza, 2004
•  "Fingimento", "Herói", "Recato", "Argila Erótica"
    In Centauros Urbanos
   
Imprece, Fortaleza, 2003
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* José Saramago, in O Conto da Ilha Desconhecida