Número 214 - ano 5

São Paulo, quarta-feira, 20 de maio de 2007

«Pelos caminhos do mundo,/ nenhum destino se perde:/ há os grandes sonhos dos homens,/ e a surda força dos vermes.» (Cecília Meireles) *
 


Nicolas Behr


Caros amigos,

A chamada geração mimeógrafo, que desenvolveu nos anos 70 a "poesia marginal", é quase automaticamente associada a autores cariocas. No entanto, há um poeta de Brasília que, de certo modo, foi o "marginal" por excelência. Falo de Nicolas Behr, nome simplificado de Nikolaus Hubertus Josef Maria von Behr.

Nascido em Cuiabá em 1958, Behr mora em Brasília desde 1974. Em 1977 lançou seu primeiro livro mimeografado, o Iogurte com Farinha, publicado por um selo denominado Pobrás – Pobreza Brasileira. O Iogurte tornou-se um best seller: de mão em mão, o poeta vendeu 8 mil exemplares. Nesse voluminho, Behr já mostrava todos os traços do que seria sua poesia: a irreverência, o sarcasmo e as sacadas rápidas. Ali estavam poemas como:


e por falar nisso...
bem, é melhor não falar nisso

quem sabe não vou deixar puto
alguém com influência no governo?
com amigos na polícia?

eu é que não vou
cair nessa conversa
de que todos são iguais perante
                                         [ a lei


Depois, vieram outros frutos de mimeógrafo, sempre marcados pela mesma irreverência: Grande Circular, Caroço de Goiaba e Chá com Porrada, todos de 1978.

Mas se os leitores apreciaram o tom crítico e debochado desses títulos (Chá com Porrada, por exemplo, era um trocadilho muito provocativo, para a época), os homens da ditadura militar não gostaram nem um pouco. Em agosto de 1978, prenderam e processaram o jovem Behr, por porte e impressão de material pornográfico. Subversivo. Está escrito no "auto de prisão em flagrante" do poeta:

"Pela leitura dos livretes de Nikolaus, depreende-se ser o mesmo bastante revoltado e procura desabafar-se de sua revolta escrevendo imoralidades, deboches às instituições e autoridades, violência, desespero (...)" No mesmo parágrafo o delegado da polícia política (DOPS) conclui que os escritos de Behr influiriam negativamente na formação dos jovens. Os livros de poesia de um adolescente viraram assunto de segurança nacional.
A casa do rapaz, onde ele mantinha os exemplares de seus livros, chegou a ser chamada de "aparelho" nos documentos policiais.

Behr foi julgado e absolvido em 1979. Que eu saiba, é o único poeta marginal que foi perseguido por causa de sua poesia. Por isso escrevi no início deste texto que ele é o único verdadeiro "marginal" — ou seja, marginalizado pela falta de liberdade de expressão.

Até 1980, Behr publicou dez livros mimeografados. Depois, parou temporariamente com a poesia, à qual retornou a partir de 1993. Ele se considera fundador da poesia Pau-Brasília. Nesse retorno, Behr criou uma cidade utópica chamada Braxília, que ele define como sua Pasárgada, ou "a Brasília não-poder, Brasília não capital, a Brasília não Brasília".

Sem a menor dúvida, diante de tantos acontecimentos atuais pouco honrosos para os Três Poderes (que são um só, segundo Behr), é bem provável que, numa toada à la Manuel Bandeira, todos nós queiramos ir embora para Braxília.

Para mais informações sobre o poeta Nicolas Behr, visite o site dele: www.nicolasbehr.com.br.


Um abraço,

Carlos Machado




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FLAP 2007

Começa no dia 29 próximo a terceira edição da FLAP, o evento literário alternativo ao FLIP, o festival de Paraty. Este ano a FLAP se realiza em três dias em São Paulo e dois no Rio de Janeiro. Com debates e leituras, o encontro tem a seguinte programação:

SÃO PAULO

29 de junho
   Casa das Rosas
   Av. Paulista, 37
30 de junho e 1° de julho
   Espaço dos Satyros I
   Praça Roosevelt, 214


RIO DE JANEIRO

4 e 5 de agosto
   Local e programação ainda não
   divulgados.




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CARTAS DE AMOR

No boletim anterior, transcrevi a letra de uma canção do cantor e compositor italiano Roberto Vecchioni, "Le Lettere d'Amore", escrita com base no poema de Álvaro de Campos que fala em cartas de amor.

Junto com a letra de Vecchioni, ensaiei uma tradução e pedi que alguém me corrigisse. A poeta Vera Lúcia de Oliveira, que mora na Itália, fez as correções. Abaixo, repito a letra original, seguida da tradução de Vera Lúcia.

Para acompanhar letra e música, clique aqui,  ou no alto-falante ao lado.


LE LETTERE D'AMORE

Roberto Vecchioni

Fernando Pessoa chiuse gli occhiali
e si addormentò
e quelli che scrivevano per lui
lo lasciarono solo
finalmente solo...
così la pioggia obliqua di Lisbona
lo abbandonò
e finalmente la finì
di fingere fogli
di fare male ai fogli...
e la finì di mascherarsi
dietro tanti nomi,
dimenticando Ophelia
per cercare un senso che non c'è
e alla fine chiederle "scusa
se ho lasciato le tue mani,
ma io dovevo solo scrivere, scrivere
e scrivere di me..."

e le lettere d'amore,
le lettere d'amore
fanno solo ridere:
le lettere d'amore
non sarebbero d'amore
se non facessero ridere;
anch'io scrivevo un tempo
lettere d'amore,
anch'io facevo ridere:
le lettere d'amore
quando c'è l'amore,
per forza fanno ridere.

E costruì un delirante universo
senza amore,
dove tutte le cose
hanno stanchezza di esistere
e spalancato dolore.
Ma gli sfuggì che il senso delle stelle
non è quello di un uomo,
e si rivide nella penna
di quel brillare inutile,
di quel brillare lontano...
e capì tardi che dentro
quel negozio di tabaccheria
c'era più vita di quanta ce ne fosse
in tutta la sua poesia;
e che invece di continuare a tormentarsi
con un mondo assurdo
basterebbe toccare il corpo di una donna,
rispondere a uno sguardo...

e scrivere d'amore,
e scrivere d'amore,
anche se si fa ridere;
anche quando la guardi,
anche mentre la perdi
quello che conta è scrivere;
e non aver paura,
non aver mai paura
di essere ridicoli:
solo chi non ha scritto mai
lettere d'amore
fa veramente ridere.

Le lettere d'amore,
le lettere d'amore,
di un amore invisibile;
le lettere d'amore
che avevo cominciato
magari senza accorgermi;
le lettere d'amore
che avevo immaginato,
ma mi facevan ridere
magari fossi in tempo
per potertele scrivere...

*

AS CARTAS DE AMOR

Fernando Pessoa fechou os óculos
E adormeceu / e todos os que escreviam para ele o deixaram só / finalmente só... / Assim a chuva oblíqua de Lisboa / o abandonou / e finalmente ele deixou / de se fingir de folhas / de fazer mal (machucar??) às folhas... / E deixou de mascarar-se / por trás de mil nomes
esquecendo-se de Ophélia /
para buscar um sentido que não há / E no final dizer-lhe "desculpa-me / se deixei tuas mãos / mas eu tinha só que escrever, escrever / e escrever sobre mim..."

E as cartas de amor, / as cartas de amor / apenas fazem rir / as cartas de amor / não seriam de amor /
se não fizessem rir / Também escrevi em meu tempo cartas de amor / eu também fiz rir: / As cartas de amor, se há amor, / têm de fazer rir

E construí um delirante universo
sem amor / onde todas as coisas / têm cansaço de existir /e dor desesperada / Mas não percebeu que o sentido das estrelas / não é o mesmo de um homem, / E se reviu na pena / daquele brilho inútil / daquele brilho longínquo / e percebeu tarde que dentro / de uma tabacaria / havia mais vida
que em toda a sua poesia / E que em vez de atormentar-se / num mundo absurdo / bastaria tocar o corpo duma mulher, / responder a um olhar...

E escrever sobre o amor / escrever sobre o amor / mesmo fazendo rir / mesmo quando a olhas / mesmo enquanto a perdes / O que conta é escrever / E não ter medo / nunca ter medo de ser ridículo / Só os que nunca escreveram / cartas de amor é que fazem rir realmente

As cartas de amor / as cartas de amor / de um amor invisível
As cartas de amor / que eu tinha começado / talvez sem perceber
As cartas de amor / que eu tinha imaginado / mas me faziam rir / oxalá eu tivesse ainda tempo / para poder escrevê-las


 

Vou-me embora pra Braxília

Nicolas Behr

 



*

ninguém me ama
ninguém me quer
ninguém me chama
nicolas behr
 


*

entro na sala

sem pedir licença
sem por favor
sem muito obrigado

vou direto ao assunto:

como vai?
tudo bem?

saio sem fechar a porta
 


*

e por falar nisso...
bem, é melhor não falar nisso

quem sabe não vou deixar puto
alguém com influência no governo?
com amigos na polícia?

eu é que não vou
cair nessa conversa
de que todos são iguais perante a lei



*

o pai berra
e no filho nascem chifres

a mãe pasta no jardim da praça
o pai prefere a grama da vizinha

entre os seis da filha mais velha
brotam mamas

mas apesar de tudo
não aconteceu nada

e unida a família bovina
entra pro curral
 


*

tô de saco cheio
desse vazio

                    De Iogurte com Farinha (1977)



"Obras completas" de Nicolas Behr

Ainda tenho, dos anos 70, as "obras completas" de Nicolas Behr: seis livretos
mimeografados (Iogurte com Farinha, Grande Circular, Caroço de Goiaba,
Chá com Porrada
, Bagaço e Com a Boca na Botija). Vinham num envelope com
o título "Haja Saco"; e, atrás, "Poesia Quae Sera Tamen".



*

a bandeira é verde
a banana é amarela

as duas palavras
começam com "b"
e terminam com "a"

o que há entre "a" e "b"
é assunto
de segurança nacional




*

se é para o bem de todos
e felicidade geral da nação
diga ao povo
que o buraco é mais embaixo

                    De Caroço de Goiaba  (1978)



*

os três poderes são um só:
o deles

                    De Brasiléia Desvairada  (1979)



*

nossa senhora do cerrado,
protetora dos pedestres
que atravessam o eixão
às seis horas da tarde,
fazei com que eu chegue
são e salvo na casa da noélia

                    De Entre Quadras (1979)
 


*

as águas do paranoá
não correm para o mar

viram nuvens
e ficam paradas no ar



*

alô? eu queria falar com
a substituta da assistente da
secretária da coordenadoria
da secretária da assessoria
da chefia da procuradoria da
defensoria da corregedoria
da ouvidoria da dona maria
que está na portaria.
ah, saiu? não volta mais hoje...

                    De Braxília Revisitada vol. I (2004)



PALÁCIO DA JUSTIÇA

bicho,
esse palácio
é a maior
cascata!

                    De Poesília – Poesia Pau-Brasília (2002)



POETA MARGINAL? EU, HEIN?

não nasci em montes claros, não tenho nome completo, não sou professor, não consegui conciliar nada com a literatura, nunca publiquei nada. atualmente não resido em porto alegre, não me chamo eduardo veiga, não escrevo poesia há mais de 15 anos. não estou organizando meu primeiro livro, não sou graduado em letras, não acredito que a poesia seja necessária, não estou concluindo nenhum curso de pedagogia, não colaboro em nenhum suplemento literário, não estou presente em todos os movimentos culturais da minha terra, não sou membro da academia goiana de letras, não trabalho como assessor cultural da sec. meus pais não foram ligados ao cinema, não tenho tema preferido, não comecei a fazer teatro aos 12 anos. não me especializei em literatura hispano-americana, não tenho crônicas publicadas no república de lisboa. não passei minha infância em pindamonhangaba. não canto a esperança, não recebi nenhuma premiação em concurso de prosa e poesia, não tenho sete livros inéditos, não sou considerado um dos maiores poetas brasileiros, nunca fui convidado para dar palestras em universidades, não vejo poesia em tudo. não faço parte do grupo noigandres. não me interesso por literatura infantil, não sou casado com o poeta affonso ávila. na minha estréia não recebi o prêmio estadual de poesia, o crítico josé batista nunca disse nada a meu respeito, não sofri influência de bilac. não sou ativo, nem dinâmico, não me dedico com afinco à pecuária, não sou portador de vasto curriculum. não recebi menção honrosa no concurso de poesia ferreira gullar. não exerço nenhuma atividade docente, nem decente, não iniciei minha carreira literária no exército, não fui a primeira mulher eleita para a academia acreana de letras, não tenho poesias traduzidas para o francês, não estou incluído numa antologia a ser publicada no méxico. minha poesia não é corajosa, não gosto de arqueologia, walmir ayala nunca me considerou um revolucionário, nunca tentei compreender o homem na sua totalidade, não vim para o brasil com 5 anos de idade, não aprendi russo para ler maiakóvski. meu pai não é chileno, não sou virgem, sou capricórnio, não sou mãe de seis filhos, nunca escrevi contos, não me responsabilizo pelos poemas que assino, não sou irônico, não considero drummond o maior poeta da língua portuguesa, não gosto de andar de bicicleta, não sou chato. não sei em que ano aconteceu a semana de 22. não imito ninguém, não gosto de rock. não sou primo dos irmãos campos, não sou nem quero ser crítico literário, nunca me elogiaram, nunca me acusaram de plágio, não te amo mais. minha poesia nunca veiculou nada. não sei o que vocês querem de mim. não espero publicar nenhum romance, não sou lírico, não tenho fogo. não escrevi isto que vocês estão lendo.

                    (Outubro de 1980)
                    De Restos Vitais (2005)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

•  Nicolas Behr
    Poemas extraídos das obras indicadas acima.
    Todas com edição do autor.
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* Cecília Meireles, "Romance XXXIV ou de Joaquim Silvério",
   in Romanceiro da Inconfidência (1953)