Número 220 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 1 de agosto de 2007 

«Quem faz um poema abre uma janela. / Respira, tu que estás numa cela / abafada, / esse ar que entra por ela.» (Mario Quintana) *
 


Nicolás Guillén


Caros,

Este é mais um boletim especial. Foi produzido pelo poeta, contista, tradutor e letrista de música popular Luiz Roberto Guedes, que já foi tema deste semanário em sua edição n. 125. Além de traduzir os poemas, Guedes apresenta o poeta desta semana — o cubano Nicolás Guillén.

O poesia.net se sente prestigiado em ter outra vez a presença de Luiz Roberto Guedes. Os poemas ao lado fazem parte de uma antologia de Nicolás Guillén traduzida, organizada e comentada por Guedes, cujo título é Que Siga El Son! Também é dele o texto abaixo, apresentando o autor cubano. Nosso agradecimento a Luiz Roberto Guedes.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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Jornalista e poeta, era assim que Nicolás Guillén se apresentava. Mestiço afro-cubano, diria risonhamente num poema: “mulata, ya sé que dice/ que yo tengo la narice/ como nudo de corbata” (‘que eu tenho o nariz largo /como nó de gravata’). Um dos grandes poetas modernos de língua hispânica, Guillén foi comparado a um García Lorca, por seu conteúdo humano, lirismo, riqueza rítmica e visão social.

Nascido em 10 de julho de 1902, em Camagüey, Cuba, trabalhou como tipógrafo, bacharelou-se em Ciências e Letras e mudou-se definitivamente para Havana em 1927. Iniciou o estudo de Direito, que abandonou para dedicar-se à poesia e ao jornalismo. Viajou pela Europa e América, fazendo conferências e leituras de seus poemas. Em 1930, publicou Motivos del Son, poemas inspirados no son (a música popular cubana), o que causou um “escândalo literário”. Com seus ritmos, queria apontar para a possibilidade de “amulatar a poética espanhola, isto é, cubanizá-la”.

Inconformado, desde a infância, com a discriminação racial — e econômica —, o poeta buscava opor-se, sistematicamente, aos “cânones de beleza branca, trazidos pelos conquistadores e impostos aos escravos”. Em 1931, lançou Sóngoro Cosongo, que desenvolvia ainda mais sua temática afro-cubana.

A partir de 1934, aprofundou o tom social de sua poesia, em obras como West Indies Ltd., em que lamenta a submissão econômica e cultural de Cuba à hegemonia norte-americana, prefigurando a revolución vindoura. Fundou a Sociedade de Estudos Afro-cubanos, e publicou ainda Cantos para Soldados y Sones para Turistas (1937), La Paloma de Vuelo Popular (1959), El Gran Zoo (1967), Antologia Clave (1971), Summa Poética (1976).

Mais tarde, reuniria sua obra completa sob o título de El Son Entero. Prêmio Nobel da Paz de 1955, Guillén presidiu a União de Escritores e Artistas Cubanos, a partir de 1961, participando ativamente da política cultural do novo regime. Faleceu em 1989.

 

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ENCONTRO POÉTICO NA BAHIA

Uma dica para os apreciadores de poesia de Salvador. Os editores da revista Iararana convidam para um encontro nesta quinta-feira com a poeta paulista Vera Lúcia de Oliveira. Escritora multipremiada, Vera Lúcia mora na Itália, onde leciona  literatura brasileira e portuguesa.

Data: 2/8/2007, quinta-feira
Hora: 20h00
Local: Restaurante Grande Sertão
Rua Adelaide Fernandes da Costa, 122 Costa Azul
Salvador BA



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RECITAL EM RECIFE

Esta outra dica é para o pessoal de Recife. Também nesta quinta-feira realiza-se o recital poético Vermelho e Azul, encenação de Neemias Dinarte para versos da poeta Cida Pedrosa.

Data: 2/8/2007, quinta-feira
Hora: 20h00
Local: SESC Santo Amaro
Rua 13 de Maio, 455 Santo Amaro
Recife PE



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Um sol entre as veias

Nicolás Guillén


Tradução de Luiz Roberto Guedes



CHEGADA

Aqui estamos!
A palavra nos chega úmida dos bosques,
e um sol enérgico nos amanhece entre as veias.
O punho é forte
e segura o remo.

No olho profundo dormem palmeiras exorbitantes,
e o grito se nos escapa como uma gota de ouro virgem.
Nosso pé,
duro e largo,
calca o pó pelos caminhos abandonados
e estreitos para nossas colunas.
Sabemos onde nascem as águas,
e as amamos porque impeliram nossas canoas sob
      os céus vermelhos.

Nosso canto
é como um músculo sob a pele da alma,
nosso singelo canto.

Trazemos a fumaça pela manhã,
e o fogo sobre a noite,
e o punhal, como um duro pedaço de lua,
próprio para as peles bárbaras;
trazemos os caimães no lamaçal,
e o arco que dispara nossas ânsias,
e o cinturão do trópico,
e o espírito limpo.

Eh, companheiros, aqui estamos!
A cidade nos espera com seus palácios, tênues
como favos de abelhas silvestres;
suas ruas estão secas como os rios quando não chove
          na montanha,
e suas casas nos olham com os olhos pávidos
          das janelas.
Os homens antigos nos darão leite e mel,
e nos coroarão com folhas verdes.

Eh, companheiros, aqui estamos!
Sob o sol
nossa pele suarenta refletirá os rostos úmidos
      dos vencidos,
e à noite, enquanto os astros arderem na ponta de
      nossas chamas,
nosso riso madrugará sobre os rios e os pássaros.



LLEGADA

Aquí estamos!
La palabra nos viene húmeda de los bosques,
y un sol enérgico nos amanece entre las venas.
El puño es fuerte,
y tiene el remo.

En el ojo profundo duermen palmeras exorbitantes,
y el grito se nos sale como una gota de oro virgen.
Nuestro pie,
duro y ancho,
aplasta el polvo en los caminos abandonados
y estrechos para nuestras filas.
Sabemos dónde nacen las aguas,
y las amamos porque empujaron nuestras canoas bajo
      los cielos rojos.
Nuestro canto
es como un músculo bajo la piel del alma,
nuestro sencillo canto.

Traemos el humo en la mañana,
y el fuego sobre la noche,
y el cuchillo, como un duro pedazo de luna,
apto para las pieles bárbaras;
traemos los caimanes en el fango,
y el arco que dispara nuestras ansias,
y el cinturón del trópico,
y el espíritu limpio.

Eh, compañeros, aquí estamos!
La ciudad nos espera com sus palacios, tenues
como panales de abejas silvestres;
sus calles están secas como los ríos cuando no llueve en
      la montaña,
y sus casas nos miran com los ojos pávidos de las
      ventanas.
Los hombres antiguos nos darán leche y miel,
y nos coronarán de hojas verdes.

Eh, compañeros, aquí estamos!
Bajo el sol
nuestra piel sudorosa reflejará los rostros húmedos de
      los vencidos,
y en la noche, mientras los astros ardan en la punta de
      nuestras llamas,
nuestra risa madrugará sobre los ríos y los pájaros.




MADRIGAL

Teu ventre sabe mais que tua cabeça
e tanto quanto tuas coxas.
Essa
é a forte graça negra
de teu corpo desnudo.

Signo de selva é o teu,
com teus colares rubros,
teus braceletes de ouro recurvo,
e esse caimão escuro
nadando no Zambeze de teus olhos.



MADRIGAL

Tu vientre sabe más que tu cabeza
y tanto como tus muslos.
Ésa
es la fuerte gracia negra
de tu cuerpo desnudo.

Signo de selva el tuyo,
con tus collares rojos,
tus brazaletes de oro curvo,
y esse caimán oscuro
nadando en el Zambeze de tus ojos.



NOTURNO NOS MOLHES

Sob a noite tropical, o porto quieto.
A água lambe a inocente orla
e o farol golpeia o paredão deserto.

Que calma tão profunda e tão simplória!
Porém sobre os molhes solitários
flutua uma visagem tormentória.

Pena de cemitérios e de ossários,
que ensina em quadros-negros tenebrosos
como um mesmo penar se parte em vários.

É que aqui ficam os gritos silenciosos
e o suor feito vidro; as desmedidas
horas de muitos homens musculosos

e fracos, tolhidos pelas bridas
feito potros. As vontades sob freio,
e sem vendas, as pálidas feridas.

A grande quietude se agita. Neste seio
de paz se move e anda um grupo enorme
que come seu pão untado de veneno.

Eles dormem agora nesse informe
leito, sem descansar. Se sonham, quase
explode aqui o espírito inconforme

que na dura aurora tragará seu cálice
de sangue diário no barraco escuro,
e a um rígido ritmo ajustará o passo.

Oh punho forte, elementar e duro!
Quem te manieta o aceno aberto?
Ninguém responde nesse porto incerto.
O farol grita sobre o mar escuro.



NOTURNO EN LOS MUELLES

Bajo la noche tropical, el puerto.
El agua lame la inocente orilla
y el faro insulta al malecón desierto.

Qué calma tan robusta y tan sencilla!
Pero sobre los muelles solitarios
flota un tormentosa pesadilla.

Pena de cementerios y de osarios,
que enseña en pizarrones angustiosos
cómo un mismo dolor se parte en varios.

Es que aquí están los gritos silenciosos
y el sudor hecho vidrio; las tremendas
horas de muchos hombres musculosos

y débiles, sujetos por las riendas
como potros. Voluntades en freno,
y las pálidas heridas sin vendas.

La gran quietud se agita. En este seno
de paz se mueve y anda un grupo enorme
que come el pan untándolo en veneno.

Ellos duermen ahora en el informe
lecho, sin descansar. Sueñan acaso,
y aquí estalla el espíritu inconforme

que al alba dura tragará su vaso
de sangre diaria en el cuartón oscuro,
y a estrecho ritmo ha de ajustar el paso.

Oh puño fuerte, elemental y duro!
Quién te sujeta el ademán abierto?
Nadie responde en el dolor del puerto.
El faro grita sobre el mar oscuro.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Nicolás Guillén
•  Poemas originais extraídos de Sóngoro Cosongo
    (antologia poética de Guillén)
    Editorial Losada, Buenos Aires, 1957
    Tradução de Luiz Roberto Guedes
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* Mario Quintana, "Emergência",
  in Apontamentos de História Sobrenatural (1976)