Número 227 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 19 de setembro de 2007 

«Ri! Coração, tristíssimo palhaço.» (Cruz e Sousa) *
 


Paulo Ferraz


Caros,

Pela segunda vez, o poesia.net retorna a um autor já apresentado no boletim. O poeta Paulo Ferraz esteve em foco na edição n. 41, há cerca de quatro anos. Na época, ele havia publicado apenas seu livro de estréia, Constatação do Óbvio, de 1999. Agora ele volta ao boletim, depois de lançar, juntos, dois novos livros este ano: Evidências Pedestres e De Novo Nada. Nascido em Rondonópolis, MT, em 1974, Ferraz viveu em Cuiabá até os 20 anos, quando se mudou para São Paulo. Aí concluiu o curso de direito e fez o mestrado em teoria literária, ambos pela USP.

Para esta segunda rodada de Paulo Ferraz, fiz uma seleção de poemas de seus novos livros. Evidências Pedestres (título tomado por empréstimo do poema-crônica “Falta um Disco”, de Drummond) é um volume que reúne textos eminentemente urbanos, que o poeta parece ter escrito ao circular pelas ruas de São Paulo. Nesse aspecto, Evidências dá continuidade ao projeto que o autor já havia delineado em Constatação do Óbvio. No entanto, seus instrumentos de expressão estão muito mais afiados.

Leia-se, por exemplo, esse excelente “Da Utilidade da Poesia (e do Poeta)”. Com delicado equilíbrio, Ferraz consegue juntar, no mesmo enredo, a questão árabe-israelense, as limitações da poesia e a contemplação casual de uma moça chupando sorvete na rua.

Em “Tragédia Urbana” o autor explora a distância entre certo discurso cheio de boas intenções estetizantes aplicado ao urbanismo e o uso cruel e excludente que se faz dos espaços públicos. Nesse poema, Paulo Ferraz lança mão de uma técnica de interseção de planos. Num plano está o texto principal, que fala do monumento arquitetônico. No outro, embutido no primeiro, aparece a fala de um arquiteto, recheada de referências aistóricas, como se sua obra pudesse pairar acima dos interesses que, em última instância, definem os rumos da cidade. A técnica do texto imbricado, com múltiplas vozes em ação, será levada a patamares ainda mais altos no livro De Novo Nada.

“Violão (Bossa Nova) de Rua” é um poema ambientado num ônibus urbano. Nele, o narrador é um homem que, assim como em "Da Utilidade da Poesia", observa uma mulher. Os detalhes que descrevem e caracterizam a moça – sejam os visíveis, sejam os supostos pela imaginação do observador – imprimem ao texto um ritmo cinematográfico. O leitor é levado a ver a jovem e a se comover com os sentimentos que vão sendo construídos no texto.

Da rua passamos para um ambiente mais fechado — o da memória. É aí que se desenvolvem os poemas “Mulher na Memória” e “Silêncio”. No primeiro, o amante constata, com ironia, sua forma esquisita de se lembrar da ex. No outro, a situação é idêntica, porém o tom é de aflição diante do silêncio causado pela ausência daquela que não mora mais no mesmo apartamento. “Um silêncio material, que / pesa feito coisa”.
Mesmo aqui, no espaço íntimo, chegam fortes os ecos da cidade. Porque o homem lembra a mulher pela lista de supermercado, pelos barulhos do apartamento vizinho.

Um ponto que não se pode deixar de ressaltar nos poemas de Evidências Pedestres é que em nenhum momento Paulo Ferraz usa o recurso da metáfora. Na prática, são textos em prosa urdidos com fina perícia de poeta. Um caso raro. Em geral, quem segue por esse caminho quase sempre quebra a cara: obtém poemas insípidos, quando não inóspitos.


DE NOVO NADA?

Os dois últimos textos desta pequena antologia são excertos do livro De Novo Nada. Nesse trabalho, Paulo Ferraz se lança num empreendimento ousado no qual radicaliza muitos dos procedimentos poéticos mostrados em Evidências Pedestres. Um deles é a indeterminação entre prosa e poesia. Outro: a completa isenção de metáforas. Mas o que mais se destaca aí é a interseção de planos textuais, com múltiplas vozes no mesmo texto. Uma polifonia.

De Novo Nada é um poema único, sem divisões em partes ou estrofes, com quase 600 linhas. O poeta escreveu-o entre 2000 e 2006. Para dar conta da imbricação de vozes, Paulo Ferraz lançou mão de alterações tipográficas. Há trechos em itálico, em maiúsculas e negrito. Além disso, aparecem textos na primeira pessoa do singular, citações, falas externas. Um livro difícil de enquadrar numa classificação.

De Novo Nada (uma referência ao Eclesiastes — “nada de novo sob o sol”?), assim como Evidências Pedestres, é um texto que vem da experiência nas cidades. O indivíduo que fala em todo o texto parece perambular pela cidade, onde encontra personagens como a cigana quiromante, uma mendiga, o sábio Haroldo (certamente uma referência ao poeta Haroldo de Campos) e a mulher do outdoor. Esta aparece várias vezes no texto e representa, na minha visão, uma espécie de símbolo da propaganda e das ideologias de consumo disseminadas na cidade. "Pobre da cidade e / dessa mulher que, calada, / se comunica comigo, / mesmo que eu, por entre prédios, / não a veja multiplicada".

Paulo Ferraz, sem a menor dúvida, vem desenvolvendo hoje um dos trabalhos mais expressivos dos poetas de sua geração. Como uma negação ao título de seu De Novo Nada, sua poesia é, sim, uma coisa nova.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•


PRÊMIO

De Novo Nada, de Paulo Ferraz, foi indicado (ao lado de Macho Não Ganha Flor, de Dalton Trevisan, e A Máquina de Ser, de João Gilberto Noll) como finalista ao título de melhor livro do ano, no 3º Prêmio Bravo! Prime de Cultura, promovido pela revista Bravo! A premiação será no dia 1º de outubro, em São Paulo.

Evidências pedestres

Paulo Ferraz

 



DA UTILIDADE DA POESIA (E DO POETA)

eu pensava no próximo homem-bomba — e em
como (aos pedaços!) gozaria de suas setenta virgens, e nos
homens-alvo tomando café, esperando o ônibus, sem saber que,
                                                                               [ e nos
tratores demolindo casas com moradores sabendo que, e nos
agentes do Mossad teleguiando mísseis, e no
choro materno e vidual das filhas de Is
                                                                     r/m
                              ael
— e nessas outras coisas que
nem minha poesia nem homens como nós
podem resolver,
quando uma moça em minha frente,
chupando sorvete me puxou de volta
com sua língua a cuidadosamente moldar
a massa em espirais. Pensei em avisá-la
que uma gota marrom espessa escorria
pelos lábios até o queixo, mas,
antes de abrir a boca,
um namorado chega e a limpa com um beijo.

Mais um problema que
nem minha poesia nem homens como nós podem resolver.



TRAGÉDIA URBANA

A maquete fora elogiadíssima na Bienal de Veneza,

                    — Meu objetivo é retratar a suspensão do tempo, o
                    fim da história, como se usa dizer. Por isso, serão
                    utilizados materiais reciclados, comprados em
                    demolições, ou fabricados por artesãos
                    especializados em imitações: na fachada haverá
                    frisos compostos de entulhos de velhos Ramos
                    de Azevedo; os balanços serão de casas neocoloniais
                    no lobby serão erguidas paredes de adobe; haverá
                    ferrarias da Sorocabana Railway; as portas, janelas
                    e maçanetas virão de cidades históricas de Minas.
                    Haverá, mas escondido, um pedaço de Niemeyer,
                    um pequeno enigma para meus pares. Não, nada
                    aqui será anacrônico, pois o presente e o passado
                    estão os dois no futuro, não é assim que disse
                    aquele poeta inglês? Pound, não é? seja quem for, é
                    o futuro sendo extraído das ruínas do tempo.

tanto que resolveram construí-la — marco
aistórico —, após um grande estudo
sociológico,
na zona cerealista da cidade.

Ninguém notou que era um marco,
até que um pivete
resolveu pichar o nome da namorada
numa das torres.

Quem hoje passa por lá
ainda lê o nome pela
metade e ainda
vê o corpo caindo.



VIOLÃO (BOSSA NOVA) DE RUA

Vinha do trabalho,
talvez secretária, ou
qualquer outra coisa
que num escritório
se obriga a ter certo
padrão de aparência,
vê-se pela roupa,
que embora não seja u-
niforme tem jeito
de (um conjunto cáqui, o
tecido já gasto, as
linhas começando a
se soltar.) Nos pés, sa-
patos ordinários,
bastante rodados,
o couro sintéti-
co está desgastado,
tendo adquirido a
forma dos ossinhos,
pelas solas nota-
se que não reside
perto da parada,
caminha, caminha,
provável que por u-
ma rua sem asfalto, ou
não seriam de lama as
manchas? Nós devíamos
levá-la nos braços.

Quanto tempo gasto
dobrando papéis e
sorrindo? ainda pouco
menina, e agora esses
cabelos que faltam
só serem grisalhos,
e esse lápis (lápis?)
contornando os olhos.
O cansaço é tanto
que ela simplesmente
se esquece do corpo,
da postura certa,
deixa-se, menina-
mente, pelo menos
aqui, cair, são as coxas
a escora dos braços.
Um pingente, Nossa
Senhora de Alguma
Coisa, faz um pêndulo
(padroeira? advogada?), a
blusa por debaixo
do casaco solta-se e
se projeta, dando a
ver seus dois peitinhos,
únicos resquícios
de felicidade,
que nos solavancos
fazem uma algazarra,
como se quisessem es-
capulir. Que graça,
mais do seu ladinho e
poderia ouvir risos.

Vou fazer um poema.



MULHER NA MEMÓRIA

Poderia guardar o
cheiro, o gosto, as formas
na memória, tê-la
quando bem quisesse
sem contato, mas o
diabo da cabeça
resolveu (que tosca)
guardar justamente o
vermelho do esmalte
na sua unha encravada.



SILÊNCIO

Resta do ouro que evapora
das mãos um silêncio, como
também dos porta-retratos
que não mais encontram a imagem
ideal, dos cabides que pen-
duram o vazio, dum par de
meias dispensadas, duma
lista de supermercados
que talvez esteja pela
metade e de bilhetinhos
extemporâneos, fantasmas
mudos, que surgem entre livros.
Um silêncio material, que
pesa feito coisa, que vem de
todos os lados e invade a
cabeça, emborcando os ombros.
Expulsá-lo implica vascu-
lhar o mundo dos barulhos:
um latido de não se sabe a
distância, o arrastar de móveis
do apartamento de cima, a
geladeira trabalhando
como o coração, enfim a-
té o mais imbecil dos sons se
transforma num alívio, como o
da tv ligada, toda
noite, na esperança de que
no sono se ouça: boa noite.

                    De Evidências Pedestres (2007)



A mulher do outdoor


DE NOVO NADA

                         (três excertos)


SÓ O IMPENSÁVEL É IMPOSSÍVEL
Deixa ler sua sorte. Mal me
dei conta e já tinha a mão da
velha agarrada à minha. Bela
mão,
Velha, menos cigana
que mendiga. pele fina,
mas essas linhas
O que me
disse em seguida perdeu-se
na poluição; minha mente
revolveu, para salvar a
sua quiromancia, o monturo,
depois, faxina completa,
decifrei: La buena dicha
de sua existên
sobreposta
soa estridente uma sirene
cia, sua singularidade
talvez, está em seu destino

(creio que a tradução correta
seria: sua fatalidade).
Coma esta resma, coma esta
resma, esta resma alimenta
seu ventre e enche os intestinos,
talvez lhe seja indigesta.
Será. Logo, escolha como
sairão de seu corpo as letras
em cada página escritas.
Até há pouco, eu era mudo,
feliz e mudo, ignorante e
mudo, por que mudo minha
forma de viver no mundo?
Seria melhor ficar quieto
num canto, ser mais um desses
tímidos, tão comuns na vida,
vencidos, sem nem saber que o
são, cuja mediocridade
total acaba fazendo-os
felizes. Mandam-me ao lodo
da consciência, onde a felici-
dade — a esperança de, a nossa
procura por — está sempre
(buscá-la e perdê-la é o mesmo)
mais adiante ou um pouco atrás. O a-
gora nunca nos dá trégua, as
rédeas do cavalo interno
desata e a seu ventre ferra
com imagens do que não pode
ter: o real é prescindível,
o real é o menor de nós, o
real é só êxtase-tormento.
Mas essas linhas, há um rosto
de mulher
o real é perda, o
real é a ilusão mais perversa e
terna com a qual nos logramos.



                              Só que a
mulher do outdoor, prisioneira
do papel, nenhum vermelho
traz em si. Devo esquecê-la?
Sem ela, viver não posso,
não posso viver contente,
pois uma sombra me cobre
seja aonde eu for, uma espessa
nuvem prenhe de tormentas
e saudade que minha vida en-
venena.



                                 Sei que
meu canto não conta um conto
só canta como cantar, se
lhes disser que ele começa,
vocês dirão que ele cessa,
se lhes disser que ele avança,
vocês dirão que ele cansa,
se lhes disser que ele fala,
vocês dirão que ele cala e
velhoenovo será, pois que
quando tudo é permitido
nada é permitido, e temos
que nos equilibrar entre o
dolo e a culpa de fazer o
que queremos sem ferir o
código amorfo que impera.
Tudo permitido, tudo
proibido, tudo foi feito,
nada foi feito por nós que,
frente a frente, cara a cara
nos falamos. Entretanto
nossa mudez é absoluta,
mesmo a daqueles que pensam
ter o dom da fala, nossa
mudez virótica é o eco
do primeiro dia, sem forma e
vazia. Pobre da cidade e
dessa mulher que, calada,
se comunica comigo,
mesmo que eu, por entre prédios,
não a veja multiplicada.

                    De De Novo Nada (2007)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007
 

Paulo Ferraz
•  "Da Utilidade da Poesia (e do Poeta)"; "Tragédia Urbana";
    "Violão (Bossa Nova) de Rua"; "Mulher na Memória"; "Silêncio"
    Evidências Pedestres
   
Selo Sebastião Grifo, São Paulo, 2007
•  De Novo Nada
    Selo Sebastião Grifo, São Paulo, 2007
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* Cruz e Sousa, "Acrobata da Dor", in Broquéis (1893)