Número 228 - Ano 5

São Paulo, quarta-feira, 26 de setembro de 2007

«Pequemos por uns tempos. Todo erro / é a encenação da nossa biografia.» (Antonio Brasileiro) *
 


Adília Lopes


Caros amigos,

"Adília Lopes e Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira são uma e a mesma pessoa. São eu." Com estas palavras, a poeta cronista e tradutora lisboeta Adília Lopes (1960-) apresenta à revista Inimigo Rumor seus nomes literário e civil. Infanta terrível da poesia portuguesa, Adília graduou-se em literatura e depois também estudou física, química e matemática. Estreou em poesia em 1985, com o livro de publicação própria Um Jogo Bastante Perigoso.

Como poeta, apenas poeta, Adília era desconhecida — destino comum de quem escreve poesia. Mas entrou na história o poder da televisão. Adília apareceu em muitos programas e tornou-se um relativo sucesso de mídia. Não exatamente pelos poemas. "Essa notoriedade televisiva foi bastante penosa, sobretudo porque se inseriu numa lógica de freak show totalmente desadequada ao real talento literário da autora", avalia o crítico português Pedro Mexia. Adília apregoa na TV que vive sozinha com dois gatos e diz, candidamente, que não tem  vida sexual. Católica praticante, Adília se define como "tímida desenrascada" ou "freira poetisa barroca".

Claro que, numa personagem assim — prato cheio para a mídia espalhafatosa —, o potencial de escândalo se antepõe às análises sérias de seus escritos. Hoje Adília, que também escreve para teatro, já tem quase duas dezenas de títulos publicados somente na área de poesia. Poemas seus já foram traduzidos para vários idiomas, como castelhano, italiano, francês, inglês, servo-croata, alemão e holandês. No Brasil, a Cosac & Naify trouxe a público em 2002 um volume de poemas da autora chamado Antologia.

Um aspecto que salta aos olhos para quem lê a poesia de Adília Lopes são a irreverência e a ironia ferina, que não poupam nada.Os próprios títulos de alguns livros dela já oferecem uma mostra adequada:  A Pão e Água de Colónia (1987); A Continuação do Fim do Mundo (1995); A Bela Acordada (1997); e Florbela Espanca espanca (1999). De cara, dá para perceber o gosto da poeta pelo trocadilho e o jogo de palavras.

Humor e ironia (muitas vezes, auto-ironia) andam de braços dados na poesia de Adília. Em certos casos, esses traços criam situações que beiram o absurdo, como no poema sem título "[Minha Avó e Minha Mãe]". Em outras situações, o texto assume um andamento ingênuo, falsamente infantil. Um exemplo disso é dado pelo poema "[Com o Fogo Não Se Brinca]".

Mas, por baixo de toda a ironia desses poemas, há a presença da vida. É a própria Adília quem diz: "Há sempre uma grande carga de violência, de dor, de seriedade e de santidade naquilo que escrevo".

Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

 

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CRÍTICA

Leia uma resenha da Antologia de Adília Lopes no site do poeta e crítico Eucanaã Ferraz.


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COM/POSIÇÕES

Neste sábado, em Belo Horizonte, lança-se o livro Com/posições, do poeta argentino Juan Gelman, com tradução de Andityas Soares de Moura.

Data: 29/9, sábado
Hora: das 10h00 às 14h00
Local: Livraria Quixote
Rua Fernandes Tourinho, 274
Savassi - Belo Horizonte, MG
 

Pão e água-de-colônia

Adília Lopes

 

 

O LUNA PARQUE

Eu julgava que aquilo era
um Luna Parque
saía-se como se entrava
e não acontecia nada irreversível durante
é o que é um Luna Parque
quando se é adolescente
mas não
quando dei por mim
já lá estava dentro
e não me lembrava
de ter entrado
quando disse agora quero-me
ir embora
riram-se ah minha rica
deste Luna Parque não se sai
quem cá vem não volta
não se volta atrás
então comecei a pensar
que ia passar o resto dos meus dias
no Luna Parque
acabas por aprender vais ver
a fazer das tripas coração
habituas-te vais ver
nos primeiros tempos dói
dá vontade de vomitar
depois percebe-se que
no Luna Parque que é
um sítio triste
pode não se ser triste
sai muito caro
mas poder pode-se

De Um Jogo Bastante Perigoso (1985)



[MINHA AVÓ E MINHA MÃE]

Minha avó e minha mãe
perdi-as de vista num grande armazém
a fazer compras de Natal
hoje trabalho eu mesma para o armazém
que por sua vez tem tomado conta de mim
uma avó e uma mãe foram-me
entretanto devolvidas
mas não eram bem as minhas
ficámos porém umas com as outras
para não arranjar complicações

De A Pão e Água de Colónia (1987)




[COM O FOGO NÃO SE BRINCA]

Com o fogo não se brinca
porque o fogo queima
com o fogo que arde sem se ver
ainda se deve brincar menos
do que com o fogo com fumo
porque o fogo que arde sem se ver
é um fogo que queima
muito
e como queima muito
custa mais
a apagar
do que o fogo com fumo

De Um Jogo Bastante Perigoso (1985)



PRIMEIRO AMOR

gostava muito dele
mas nunca lhe disse isso
porque a minha criada tinha-me avisado
se gostar de um rapaz
nunca lhe diga que gosta dele
se diz
ele faz pouco de si para sempre
os rapazes são maus
eu não era bela
nem sabia quem tinha pintado os Pestíferos de Java
resolvi assim escrever-lhe cartas anónimas
escrevia o rascunho num caderno pautado
não sei hoje o que escrevia
mas sei que nunca escrevi
gosto muito de ti
e depois pedia a uma rapariga muito bonita
que passasse as cartas a limpo
eu acreditava que quem tinha uns cabelos
assim loiros e a pele fina
devia ter uma letra muito melhor que a minha
agora que conto isto
vejo que deixo muitas coisas de fora
por exemplo que o meu primeiro amor
não foi este mas o Paulo
o irmão da rapariga bonita



METEOROLÓGICA

             para o José Bernardino

Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter

Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas

Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)

A vida
é livro
e o livro
não é livre

Choro
chove
mas isto é
Verlaine

Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico




[NÃO GOSTO TANTO]

Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito de seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever.

De Florbela Espanca espanca (1999)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2007

Adília Lopes
"O Luna Parque", "[Minha Avó e Minha Mãe]" e "[Não Gosto Tanto]"
In Antologia
Cosac & Naify (São Paulo)/7 Letras (Rio), 2002
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* Antonio Brasileiro, "Na Noite Grande", in Dedal de Areia (2006)