Número 241 - Ano 6

São Paulo, quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

«O verso é o doido cantando sozinho. / Seu assunto é o caminho. E nada mais! / O caminho que ele próprio inventa...» (Mario Quintana) *
 


Dante Milano, aos 50 anos


Caros,

O poesia.net retorna hoje, após o já tradicional recesso no início do ano. Nesta retomada, vamos revisitar o poeta carioca Dante Milano (1899-1991), destacado na edição n. 34 do boletim. Não tenho muito a acrescentar ao que foi dito daquela vez. Arredio à fama, publicou um único livro — Poesias —, em 1948, quando já beirava os 50 anos. A bem da verdade, ele mesmo não o publicou: o volume saiu por instância de amigos, à revelia do poeta.

Os poemas de Dante Milano receberam calorosa acolhida da crítica e a admiração de escritores como Carlos Drummond de Andrade. Mesmo assim, o poeta é, até hoje, desconhecido para a maioria dos leitores.

Dante Milano foi também respeitado tradutor de poesia. Verteu para o português três cantos do Inferno, de Dante, 38 poemas d’As Flores do Mal, de Baudelaire, e ainda poemas de Mallarmé e Shakespeare.

Toda a coleção de poemas escritos ou traduzidos por ele, mais ensaios e outros textos em prosa, está em sua Obra Reunida, organizada por Sérgio Martagão Gesteira e publicada (fora de comércio) pela Academia Brasileira de Letras em 2004. Trata-se de uma edição caprichada, com mais de 500 páginas.

Existe também uma antologia, Dante Milano – Melhores Poemas, com seleção e apresentação de Ivan Junqueira. Esta saiu em 1998 pela Editora Global. É o único volume com escritos do poeta disponível nas livrarias.

Na apresentação dos Melhores Poemas, Ivan Junqueira chama a atenção para a atemporalidade da poesia de Dante Milano. De fato, embora o poeta seja classificado como autor modernista, seus poemas não têm a marca da poesia modernista, especialmente aquela dos anos 20. (Vale lembrar que, embora publicado somente em 1948, o autor já escrevia desde muito antes).

De fato, é difícil identificar a "idade" dos versos de Dante Milano. Quando teria sido escrita, por exemplo, essa pequena obra-prima que é "Paragem"?
"O boi da minha tristeza, / O boi do meu cansaço, / O boi da minha humilhação".

A poesia de Dante Milano é sempre marcada por uma apreciação melancólica do espetáculo humano. Com versos de fatura simples — falsamente simples , ele constrói momentos de pura contemplação e perplexidade. É o sentimento em que nos envolvem praticamente todos os poemas reproduzidos ao lado.

"Chego à amurada do cais, / Tomo um trago de tristeza. / Vem uma aura de beleza / Entontecer-me ainda mais". Tente dizer em voz alta esses versos iniciais de "A Partida". Eu cá, ao fazer isso, não somente ouço o barulho das ondas como sinto o cheiro do ar impregnado de sal.

Em "Máscara", o poeta contrapõe os vãos disfarces que adotamos e nossa verdadeira face "máscara desbotada / de carnavais passados". Em "Música Surda", entra em cena a passagem do tempo, esse fantasma de nossa existência: "E da ampulheta milenar do sol / Escorre em poeira a luz de mais um dia". Versos soberbos.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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Drummond e Milano

"A popularidade nada tem a ver com a poesia. (...) Dante Milano é um poeta de extraordinária qualidade que não tem a mínina popularidade. Se você perguntar a um estudante quem é Dante Milano, ele não sabe. Se perguntar quais são os melhores poetas brasileiros, ele não inclui Dante Milano. A popularidade então não tem a menor importância".

Carlos Drummond de Andrade, em sua última entrevista (1987).
In O Dossiê Drummond, de Geneton Moraes Neto, Ed. Globo, 1994.



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Dante Milano musical

Especializado em musicar textos de poetas (Drummond, Pessoa, Cecília, García Lorca), o grupo carioca Música Surda adotou o nome do poema homônimo de Dante Milano, transcrito ao lado.

Clique aqui para ouvir o poema, recriado pelo Música Surda. Visite também o site do conjunto:
www.letras.ufrj.br/musicasurda/
 

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Poesia.net quinzenal

O boletim poesia.net, que nos últimos cinco anos circulou todas as quartas-feiras, passa a ser quinzenal. Quarta sim, quarta não. Agora, após consultar meus estoques de poetas "boletináveis", concluí que minha represa não seria capaz de continuar a abastecer o boletim toda semana com textos de qualidade no mínimo razoável. Então, para manter o padrão, vamos em passo mais lento.


 

Farol na névoa

Dante Milano

 



MÚSICA SURDA

Como num louco mar, tudo naufraga.
A luz do mundo é como a de um farol
Na névoa. E a vida assim é coisa vaga.

O tempo se desfaz em cinza fria,
E da ampulheta milenar do sol
Escorre em poeira a luz de mais um dia.

Cego, surdo, mortal encantamento.
A luz do mundo é como a de um farol...
Oh, paisagem do imenso esquecimento.







MÁSCARA

Passa o tempo da face
E o prazer de mostrá-la.
Vem o tempo do só,
A rua do desgosto,
O trilho interminável
Numa estrada sem casas.
O final do espetáculo,
A sala abandonada,
O palco desmantelado.

Do que foi uma face
Resta apenas a máscara,
O retrato, a verônica,
O fantasma do espelho,
O espantalho barbeado,
A face deslavada,
Mais sulcada, mais suja,
De beijada, cuspida,
Amarrotada
Como um jornal velho.
Máscara desbotada
De carnavais passados.
Esta é a nossa cara
Escaveirada.

Até que a terra
Com sua garra
Nos rasgue a máscara.

 

AO TEMPO

Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,

Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida

A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando

Tempo, vais para diante ou para trás?



A PARTIDA

Chego à amurada do cais,
Tomo um trago de tristeza.
Vem uma aura de beleza
Entontecer-me ainda mais.

Sinto um gosto de paixão
Dentro da boca amargosa.
Vem a morte deliciosa
Arrastar-me pela mão.

Vou seguindo sem olhar,
Vou andando sem rumor,
Ouvindo a vaga do mar
Bater na pedra da dor.

Vou andando sobre o mar,
Quem sabe onde irei parar?
Vou andando sem saber
Aonde me leva este amor.



ESCULTURA

A forma da fêmea integrou-se no corpo do macho,
Ambos uma só pedra
Onde ressaltam, invisíveis, separando-os
As duas almas supérfluas.



CENÁRIO

Tudo é só, a montanha é só, o mar é só,
A lua ainda é mais só.
Se encontrares alguém
Ele está só também.

Que fazes a estas horas nesta rua?
Que solidão é a tua
Que te faz procurar
O cenário maior,
O de uma solidão maior que a tua?



PARAGEM


Com os meus bois.
Os meus bois que mugem e comem o chão,
Os meus bois parados,
De olhos parados,
Chorando,
Olhando...
O boi da minha solidão,
O boi da minha tristeza,
O boi do meu cansaço,
O boi da minha humilhação.

E esta calma, esta canga, esta obediência.



O Beijo - mármore de Auguste Rodin (1840-1917)
O Beijo, mármore de Auguste Rodin (1840-1917)


EM FORMA DE AMOR

Por que me apertas com tanta força?
Por que não tiras os olhos dos meus?

Teu abraço me esmaga,
Teu beijo me sufoca,
Teus dedos se cravam nos meus cabelos,
Tua voz rouca parece exprimir num rugido o que as palavras
                                             [ não podem significar...

Por que me agarras?

Assim dois inimigos se abraçam para lutar.

 

COMPOSIÇÃO

Duas mulheres juntas
Formam desenhos dúbios

Se numa só há tantas,
As duas serão quantas?

Uma na outra transformo
E, misturando as formas,

No mesmo luar as banho,
Metamorfoses sonho.

Todas parecem uma
A quem a todas ama.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2008

Dante Milano
• In Obra Reunida
   Organização e estabelecimento do texto,
   Sérgio Martagão Gesteira
   Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2004
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* Mario Quintana, "O Verso" (poema completo),
  in Preparativos de Viagem (1987)