Número 245 - Ano 6

São Paulo, quarta-feira, 9 de abril de 2008 

«Tudo depende da hora / e de certa inclinação feérica, / viva em mim qual um inseto.» (Carlos Drummond de Andrade) *
 


Cida Pedrosa


Caros,

Nascida em 1963 em Bodocó (PE), Cida Pedrosa é poeta, advogada e divulgadora cultural. Atualmente, em parceria com Sennor Ramos, edita o espaço Interpoética e integra a equipe do site Escritoras Suicidas.
Na década de 80, Cida Pedrosa coordenou o Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco, que promovia recitais de rua e publicações alternativas.

A escritora estreou em livro em 1982, com a coletânea de poemas Restos do Fim. De lá para cá, já publicou mais três volumes-solo: O Cavaleiro da Epifania (1986); Cântaro (2000); e Gume (2005). Além disso, participou de várias antologias coletivas e contribuiu na organização de outras publicações de poesia.

Cida Pedrosa é uma das vozes mais expressivas em atividade na poesia brasileira. Seus poemas têm a propriedade de combinar duas linhas de força aparentemente opostas uma vertente social e outra de natureza mais íntima, embora não confessional. A primeira linha caracteriza um trabalho que mantém os olhos bem abertos para o que se passa ao redor, notadamente a realidade das gentes e coisas de Pernambuco.

Nesse aspecto, a poesia de Cida Pedrosa funde-se à paisagem para gestar um "poemapodre", "poemaponte", sufocado de "fumaça ferrugem fuligem". A cidade, claro, é Recife, tanto no texto "Urbe", como em "O Oriente da Cidade", transcritos ao lado. Também deve ser de Recife essa Milena, que dá título a outro poema, funcionária que relata suas aventuras amorosas na cantina da repartição. Igualmente recifenses devem ser o funcionário de "Morte sob Carbono" e o trágico menino que se diverte perigosamente, pegando carona nos carros, em "O Surfista".

Mas a mesma poeta que trata desses temas densos, com a dor visitando o Capibaribe, também sabe dedilhar as cordas da ternura em canções de amizade, como "Um Certo Sol sobre São Paulo" ou de entrelaçamento amoroso, a exemplo do sutilmente erótico "O Caminho da Faca". Em poemas como "Céu de Confeiteiro", as vertentes pública e íntima da poesia de Cida Pedrosa fundem-se no mesmo ritual.

A poeta Cida Pedrosa sabe que é sempre oportuno cantar o amor, mesmo "em tempo de luas magras".


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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MÚSICA E POESIA

Dica para quem está em São Paulo.
O poeta Floriano Martins e o compositor Mário Montaut lançam na cidade, nesta sexta-feira, duas obras de sua autoria: o CD Brincos do Mar e o Infinito, dos dois, e o livro Duas Mentiras, de Floriano. O encontro terá música, leitura de poesia e projeção de imagens.

Data: 11/4, sexta-feira
Hora: 20h00
Local: Vila Teodoro
Rua Teodoro Sampaio 1229 – Pinheiros [Esquina da Henrique Schaumann – estacionamento na Teodoro Sampaio, 1355]


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O PÓ E O PÓLEN

Recebo, de poetas brasilienses, a notícia de que destruíram, na capital federal, uma bela iniciativa de poesia pública. Apareceram em pedaços, na semana passada, 12 mosaicos poéticos instalados em ruas de Brasília desde 2004. As peças exibiam versos de poeta locais e foram criadas pelo artista plástico Henrique Gougon e o Grupo Loucos de Pedra. Os responsáveis pela destruição, segundo a notícia, foram fiscais contratados pelo Projeto Brasília Limpa. O poesia.net solidariza-se com a indignação dos poetas brasilienses.




Acima, foto de dois dos mosaicos destruídos, que exibiam poemas de Nicolas Behr. Abaixo, poema de Paulo José Cunha sobre o episódio:

Mesmo que os cacos dos versos
escorram pelas sarjetas
sempre há quem os recolha
para os plantar novamente

(toda poesia é semente)

Marretadas não abolem
uma verdade maior:
versos nunca viram pó
todo verso vira pólen.


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poesia.net em números

O site Algumapoesia.com.br, que abriga este boletim, registrou um recorde em março: 1399 visitantes diários (43,4 mil em todo o período). Outro recorde de março: no dia 26, 2312 internautas passaram pelo site.
 

 


 

Em tempo de luas magras

Cida Pedrosa

 



UM CERTO SOL SOBRE SÃO PAULO

                 para maria josé oiticica


o sol se põe em são paulo

a brisa rasteira
rasteja meus pés
que se põem entre o azul
e o mostarda do sofá da tua sala

o sol se põe
sob os aviões da planície
e eu
pássaro aceso
                     espero
nesta casa de marias
que voam nas asas da panair

o sol se põe sob são paulo
e eu
pássaro sem saída
                     grito
teu nome de ateu

são paulo anda à margem

à margem de mim
à margem de ti
à margem de nós

são paulo anda à margem do mar
e o pôr do sol voa mais alto
que as luzes de neon



Di Cavalcanti - Mulheres e Frutas, óleo sobre tela, 1962
Di Cavalcanti
– Mulheres e Frutas, óleo sobre tela, 1962
— "sem a voz de milena / o café desce amargo"


MILENA

gosto quando milena fala
dos homens
que comeu durante a noite

é a única voz soante
nesta cantina de repartição

onde todos contam:
do filho drogado do preço do pão
do sapato carmim, exposto na vitrine
da rua sicrano de tal do bairro
de casa amarela
onde você pode comprar
e começar a pagar apenas em abril

sem a voz de milena
o café desce amargo



O CAMINHO DA FACA

parte em arco
rumo ao corpo amado
flecha a fera, exposta
à chaga

cruza a dor, o sonho
escuta

zunindo a lâmina
flamejante alcança
artérias e vasos
aquedutos pontes

parte em seta
rumo ao corpo amado
serena ira, ao amor
alcança

desdobra a carne
desnuda a veia
instala certeira
a eternidade

pára qual âncora
dentro do corpo amado
ferina flor, ao corpo
planta



URBE

hoje na minha boca
não cabem girassóis

cabe um poemapodre
cheiro de mangue capibaribe

um poemaponte
galeria esgoto chuvas de abril

um poemacidade
fumaça ferrugem fuligem

hoje na minha boca
cabe apenas o poema

o poema hóspede da agonia
 


CÉU DE CONFEITEIRO

uma fatia de céu
é dada
nesta noite de maio

quinhão que cabe ao homem
que da janela espera

a urbe apita
e o calor
se faz bruma e precipício

uma fatia de céu
é dada
aos amantes da varanda

quinhão que cabe ao amor
em tempos de luas magras



MORTE SOB CARBONO

a floresta (dentro
da sala)
espia o homem
que se apóia na caneta

nomes números nódoas

as velhas esperam
o ventilador gira
o café esfria o bigode do funcionário

— papel poeira pesares
— idades vãs
entre
um documento e outro
um carimbo e outro
uma certidão e outra

as velhas

acertam um grampo na alma
e pactuam um prazo com a morte







O ORIENTE DA CIDADE

entre pombos e putas construí poemas

a cidade era lúcida
a radiola de fichas juntava nossas coxas
os retalhos eram enfeites de salão

entre pombos e putas construí poemas

a cidade era música
cama de loucos e as mulheres livres
para o copo para o corpo para as ruas

entre pombos e putas construí poemas

a cidade era à prova de balas
a ponte era à prova de sonhos
a dor visitava o capibaribe

entre putas e pombos construí poemas



DIFERENÇA

meu amor ouve fado
não rodopia
apenas baila e espreita.

eu gosto de tango.

minha mãe sempre diz:
seus olhos são trágicos.



O SURFISTA

um tempo

passa kombi
passa corpo
passa poste
passa árvore
e o menino pendurado na lanterna

dois tempos

passa moto
passa morte
passa gente
passa carro
e o menino pendurado na flanela

três tempos

passa ônibus-bicicleta-caminhão
pega brisa
pega onda
pirueta — flamboaiã
flexão — fio de cobre
e o menino pendurado na banguela

passa a via
passa o vulto
passa a vida
passa o passo
paira o ar
               sangue e vidro
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2008

Cida Pedrosa
•  Seleção de poemas da autora
______________
* Carlos Drummond de Andrade, "Idade Madura",
  in A Rosa do Povo (1945)