Número 251 - Ano 6

São Paulo, quarta-feira, 25 de junho de 2008 

«Não nos peças a fórmula que te possa abrir mundos, / e sim alguma sílaba torcida e seca como um ramo.» (Eugenio Montale) *
 


Lenilde Freitas


Caros,


Para mim é sempre uma boa surpresa quando, sem querer, descubro um bom poeta do qual não tinha notícia. Foi assim com Lenilde Freitas. Um dia, recebi dela um e-mail com alguns poemas e poucas informações sobre a autora. Fiquei sabendo apenas que era natural de Campina Grande (PB), poeta e tradutora, com formação acadêmica em literatura.

Mas, ao ler os poemas, logo notei que não se tratava de versos escritos por uma noviça. Eram textos de alguém dotado de mão firme, que entendia do riscado. Não me enganei. Após uma troca de e-mails (e, claro, algumas pesquisas na internet — Google, pra que te quero?), descobri que Lenilde Freitas tem seis livros publicados e já amealhou uma série de prêmios literários, inclusive o Nestlé. São seus livros: Desvios (1987); Esboço de Eva (1987); Cercanias (1989); Espaço Neutro (1991); Tributos (1994) e Grãos na Eira (2001). Na pequena seleta ao lado, encontram-se poemas de cinco desses livros, além de um texto inédito.

Os poemas de Lenilde Freitas têm traços de textos construídos com extrema atenção aos detalhes (do verso e da vida), num caprichoso trabalho de bordadeira ou de quem faz arranjos de flores. Leia-se, por exemplo, o poema "A Casa", que abre a seleta. Uma descrição bastante simples — cujo lugar parece situar-se no chão da memória —, vai envolvendo o leitor num sentimento de perda e de saudade, sem que nada seja dito sobre saudade ou perda. Para isso contribui o encantamento do ritmo, marcado ora pelas rimas, ora pelas repetições. E surge na mente do leitor uma goteira, que não é bem de água, mas de tempo, sangrando, sangrando.

Há um espírito de haikai na brevidade de alguns poemas de Lenilde Freitas. Em "O Peixe", por exemplo, há a tentativa de captar "a coruscante dádiva" que é o brevíssimo momento de um peixe nadando na lua projetada na água.

Também parece pescado nas águas da memória a quadra de "A Fazenda", que fala de crianças e de uma cisterna em ambiente rural. Os poemas "A Graciliano Ramos" e "A Sylvia Plath" fazem parte do volume Tributos, em que cada texto é uma homenagem a um escritor. No poema à americana Sylvia Plath, Lenilde chama a poeta apenas pela primeira letra do nome, obtendo um feliz efeito  sinestésico: "
Ouve os pombos,
S... / o arrulho que eles fazem". Por fim, vêm os fragmentos do livro Esboço de Eva, que apresenta vozes femininas.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado




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MAIS LENILDE FREITAS

Veja outros poemas de Lenilde Freitas no boletim

- poesia.net n. 275

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Goteira da memória

Lenilde Freitas

 



A CASA

Da porta principal à derradeira,
um corredor. Só o piso de madeira.

As portas laterais, trancadas.
Todas elas.

Pelas janelas,
fogem os fantasmas gerados na cumeeira.

Que mais?
Que mais?

Ah, sim: uma goteira, sangrando... sangrando...
sujando a casa inteira.

               De Espaço Neutro (1991)

 

O PEIXE

Nada
o peixe na lua
espelhada na água.
Impele,
leve como num sonho
o bojo vazio.
Alheio
à coruscante dádiva
— que ele sabe breve —
Enxágua seu longo silêncio
no fundo do rio.

               De Grãos na Eira (2001)



O amor em mim / está maduro como um peixe. (Lenilde Freitas, "Aquário")
 


AQUÁRIO

O amor em mim
está maduro como um peixe.
De tanta água repleto,
ele não nada.
Pesado cochila sob pedras
— completo.



RECOMEÇO

No aquário
O peixe reaprende a nadar:
sob as escamas,
guardou o mar.

               De Cercanias (1989)



FAZENDA

Cisterna abaixo descem os sonhos
na lata presa a uma corda.
Entre moleques risonhos,
a vida sobe: cheia até a borda.

               Inédito em livro
 


A GRACILIANO RAMOS

O dia é um rio. E nele
bebo as estrelas do céu
e recrio
nos remansos de cobras
os bambuzais.
Ao léu, penso ovelhas,
penso folhas que não caem,
carícias de vento nos coqueirais
— a vida que se disfarça.

             Do trem que não passou,
             penso a fumaça.



A SYLVIA PLATH

Ouve os pombos, S...
o arrulho que eles fazem.
São sempre tão delicadas
as margaridas
e imprensada entre ladrilhos
cresce a grama.
Ouve os pombos, S...
se o tédio te aprisiona
entre estas asas úmidas
que não chegam às estrelas
nem vêem seu brilho.
Ouve, S... o arrulho que eles fazem.
Viver é doce. Cada dia tem seu som
cada som, sua gama.

               De Tributos (1994)



"No cristal-lua contemplo / os teus pés seguindo rastros". (Lenilde Freitas, "Esboço de Eva"). Ilustração - "Uma" - de "Vânia Medeiros"

"Uma", ilustração de Vânia Medeiros (www.flickr.com/photos/vania_medeiros)



ESBOÇO DE EVA

(fragmentos)

... Profetisa deste templo
de horizontes e astros,
no cristal-lua contemplo
os teus pés seguindo rastros.
Cigarra de ouro presa à madeixa,
do barro de Atenas moldar-te-ão gueixa.
Sete portas terá Tebas,
todas com um guardião
— Prevejo: por uma delas
fugirá teu coração.

Vai sem ir, corpo, traz o aroma que embriaga,
traz o mel que hipnotiza,
traz a luz que não se apaga,
traz o sopro que eterniza.
Espalha raiz macerada por cima de minha esteira,
deixa escorrer o tempo o tempo que ele queira.
Vai caminhando leve
por este vale encantado,
antes que a neve chegue,
vai corpo, sem ir, com cuidado.

E tanto pelo canto
a alma se enleva,
que o braço por seu tanto
a mão direita eleva
e segura
o fruto que o tempo em seu pomar apura.
Adocicada a polpa inigualável do sabor primeiro,
o suco, que o prazer derrama
por entre os dedos, é denso, como denso é o bosque
inteiro
de onde escorre lama.


               De Esboço de Eva (1987)


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2008

Lenilde Freitas
•  "A Casa"
   
In Espaço Neutro (Estação Liberdade, 1991)
•  "O Peixe"
   
In Grãos na Eira (Ateliê, 2001)
•  "A Graciliano Ramos", "A Sylvia Plath"
   
In Tributos (Giordano, 1994)
•  "Aquário", "Recomeço"
    In Cercanias (Scortecci, 1989)
•  "Esboço de Eva"
   
In Esboço de Eva (Roswitha Kempf, 1987)
•  "Fazenda"
 
  Inédito em livro

Ilustração: "Uma", de Vânia Medeiros
Fonte: www.flickr.com/photos/vania_medeiros
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* Eugenio Montale, in Ossos de Sépia (1925), trad. Renato Xavier