Número 252 - Ano 6

São Paulo, quarta-feira, 9 de julho de 2008

«Escrevo para me tornar invisível, / Para perder a chave do abismo.» (Murilo Mendes)
 


Maria Thereza Noronha


Caros amigos,

A poeta Maria Thereza Belisário de Noronha nasceu em Juiz de Fora (MG). Formou-se em Direito pela Universidade Federal daquela cidade, trabalhou e reside no Rio de Janeiro. Maria Thereza estreou em livro em 1990, com o volume de poemas A Face na Água. Depois, publicou Pedra de Limar (1993), A Face Dissonante (1995), Alaúde (2001) e O Verso Implume (2005).

Praticante de uma poesia essencialmente lírica, Maria Thereza Noronha pertence à estirpe de brilhantes vozes femininas em que se destacam nomes como Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa. O ponto comum entre essas três poetas está na singeleza do verso, que flui leve e musical. Leia-se, por exemplo, o poema "Simplicidade", integrante do livro O Verso Implume. De fato, a autora parece despir seu discurso de qualquer excesso de plumagens. "Sem peso e sem gravidade / ao vento flutua, incerto".

A poesia de Maria Thereza Noronha é também uma meditação sobre a passagem do tempo. Este, direta ou indiretamente, é o tema de vários dos poemas transcritos ao lado. De forma explícita, o fluir do tempo está presente, por exemplo, em "Memória", "Finito e Infinito", "Fotografia" e Duas Fotos".

Maria Thereza Noronha é mais um desses poetas que constroem, discretamente, sem alarde nem foguetório, uma obra poética sensível que merece nossa atenção. Agradeço ao contista e tradutor carioca Ivo Korytowski por ter me apresentado a poesia de Maria Thereza Noronha.

Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

 

 

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LANÇAMENTOS

A Editora da Casa lança, no próximo dia 15 de julho, três livros de poesia e dois de ensaios. São eles:

Poesia:
Exames de Rotina
  de Tarso de Melo
Vazados e Molambos
  de Laura Erber
Livro da Dança
  de Gonçalo M. Tavares

Ensaio:
Livro, Segredo e Infâmia
  de Júlia Studart
55 Começos
  de Manoel Ricardo de Lima

Data: 15/7, terça-feira
Hora: A partir das 20h00
Local: Pizzaria Urca
Av. Brigadeiro Luís Antônio, 2401 -  tel. (11) 3289-0456
São Paulo –
SP

O verso sem plumas

Maria Thereza Noronha

 

 

SIMPLICIDADE

O que por mar vier não sendo barco
alga coral peixe retardatário
será de mim o que deixei alhures:
praia perdida de remoto mar.

O que por ar vier não sendo asas
— aeronave ou ave migratória —
rumor será de vento nas acácias:
rota antiga de um sonho perdulário.

O que por terra vier será bem-vindo
como bem-vindas são as coisas simples,
estratégia e rotina se alternando:
legada a insanidade aos altos píncaros.

          De O Verso Implume (2005)



"Em que águas refletida / sorri agora, tardia, / a face que me sorria / lá no fundo da bacia?" (Maria Thereza Noronha) - Imagem de www.musicaaolonge.blogger.com.br


MEMÓRIA


Quando foi aquele tempo
em que eu me olhava, sonhando,
nas águas desta bacia
e via o rosto da moça
que, do fundo, me sorria?

Onde foi parar o sonho?
Pra onde foi a magia?
Pra onde o rosto da moça
que, do fundo, me sorria?

Em que águas refletida
sorri agora, tardia,
a face que me sorria
lá no fundo da bacia?

          De A Face na Água (1990)



FINITO E INFINITO

Ente as folhas do outono
e a infinita linha do oceano

cumpre-nos escalar montanhas
decifrar inscrições rupestres
desmontar o teorema, captar
sua argúcia de mestre.

E, inabaláveis, posto que lúcidos,
no finito da carne o agudo vértice
suavizar, e o ardor insano.

Entre as folhas do outono
e a sombra dos ciprestes.

          De A Face Dissonante (1995)



FOTOGRAFIA

                 (ao Iacyr Anderson Freitas)

Escura de sombra, se apaga
ao clique metálico da câmera.
Recusa o sol e a imagem rápida
do instantâneo.

Não posa, pousa. Garça humilhada
do vôo ao pântano passa.
Quando a revelarem, pouco se abrirá
da flor que o ventre disfarça.

Escorre a recusa na chapa,
lambuza a imagem. O contorno
se esfuma, borra
o canto do expressivo mapa

da família. Diluída,
nada se verá de seu.
Que face é esta, ensombrecida?
Tenta o sorriso? Ensaia o adeus?

Não repousa, pousa. Sem peso
nem rosto — ignota, fiel
a si mesma. Recusa a seca
imortalidade do papel.

Cem anos depois, o álbum
— onde histórias se contam, esgarçadas,
na face neutra dos antepassados —
alguém folheia, sem ênfase, sem pressa.
Indaga, a esmo:
E quem é essa?



VERSOS IMPLUMES

Pousa no papel, de leve,
a pluma de um verso imberbe.
Sem peso e sem gravidade
ao vento flutua, incerto.

Não há mão que, firme, o empunhe
nem há, certeira, a palavra
que armá-lo em seus ossos possa
e a ele se prenda, escrava.

E a ele se agarre, invicta,
nos expoentes da luta
e delineie o sentido
que a maré vazante esboça.

E vá se emplumando em signos
nas densas hastes do ritmo
e coreografe o minuto
onde o verbo se faz carne.

Ah, que a palavra desate
o cativo, implume pássaro!
E nele exercite a arte
de livre voar, incólume.
E explodir, absoluto.



"Vamos juntos à praia ou ao cinema / ou fiquemos apreciando o pôr-do-sol / que de teu dorso escuro se irradia." (Maria Thereza Noronha)


CARPE DIEM


Como da rotina desencravar
o dia
(banho, café, jornais,
cartas a escrever, contas a pagar)
e estendê-lo para secar
ao sol de maio?
O dia sem véspera
ou promessas vindouras
sem a face encovada da dúvida.
E, então, nos olharíamos e eu diria:
olá, dia.
Vamos juntos à praia ou ao cinema
ou fiquemos apreciando o pôr-do-sol
que de teu dorso escuro se irradia.
E o dia, gema posta a brilhar
ao sol de maio,
com a dureza e o mistério dos dias,
em fios iridescentes se envolveria.
E, fixando-me os olhos,
me cegaria.

Como da retina desencravar
o dia?



DUAS FOTOS

Todos os cinco irmãos
aqui estão
espremidos no retrato
premidos pelo ato
de posar.

Todos os cinco irmãos
mais parceiros e preceitos
de jornada e convivência
(tirante alguns que à solidão
não deram jeito).
Já as idades, somadas,
alcançam muitas dezenas.

Quanto — nas fisionomias
aqui renovadas
no tempo que se refaz —
resta da fotografia
antiga, aquela de
quarenta anos atrás?

O irmão hoje encanecido
posa no colo da mãe
e o que exibe alguma calva
pertence a outra tarde malva
posto de terno e gravata
aos dezesseis.

As três irmãs, pelo tempo
modeladas
na mesma fôrma e cinzel,
aqui persistem, devotas,
de idêntica liturgia
na mesma altura dispostas.

Entanto, a foto de antanho
exibe-as em escadinha
cada uma em seu tamanho.

E a mãe, ausência serena
aqui,
na outra domina a cena.

          De O Verso Implume (2005)
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2008


Maria Thereza Noronha
• "Simplicidade", "Fotografia", "Versos Implumes",
   "Carpe Diem" e "Duas Fotos"
   In O Verso Implume
  
Oficina do Livro, Rio de Janeiro, 2005
• "Memória"
   In A Face na Água
  
Ed. da Autora, Rio de Janeiro, 1990
• "Finito e Infinito"
   In A Face Dissonante
  
Oficina do Livro, Rio de Janeiro, 1995
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* Murilo Mendes, "A Fatalidade", in Mundo Enigma (1942)