Número 255 - Ano 6

São Paulo, quarta-feira, 3 de setembro de 2008 

«Eu queria trazer-te uns versos muito lindos... / Trago-te estas mãos vazias / Que vão tomando a forma do teu seio.» (Mario Quintana)  *
 


Bandeira e Drummond:
montagem de retratos pintados por Candido Portinari



Caros amigos,

Este boletim é dedicado a uma categoria geralmente considerada menor — os poemas de circunstância. Trata-se daqueles versos que o poeta escreve não sob o influxo de uma idéia lírico-amorosa, épica ou filosófica, mas tendo por motivação um fato trivial: o aniversário de um amigo, uma dedicatória, um acontecimento qualquer ao qual não se atribui grande eletricidade poética.

Em certo sentido, o poema de circunstância é primo da crônica, em especial quando os dois se dedicam ao registro de pequenos fatos e se erguem, despretensiosos, com base em coisas desimportantes. Uma diferença que me ocorre nessa literatura de varejo é que a crônica, em geral, se escreve com o objetivo de publicação. O poema, ao contrário, é algo que pretende ficar entre o poeta e outra pessoa — por exemplo, o destinatário de uma dedicatória — ou, no máximo, restrito a um pequeno grupo ao qual o texto, quase sempre jocoso, diz respeito.

Dois de nossos maiores nomes do modernismo, Manuel Bandeira (1886-1968) e Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), foram useiros e vezeiros dessas pequenas composições em verso. Bandeira chegou a escrever um livro somente com poemas desse naipe — o Mafuá do Malungo, de 1954. Substancial parcela dos textos desse volume tem títulos com o nome da pessoa homenageada. O autor os chamou de "jogos onomásticos". São mimos, saudações e louvações — enfim, variadas formas de celebrar a convivência e a amizade. Nesses jogos, com muita graça, ele incluiu até o próprio nome.

Embora socialmente mais retraído, Drummond foi aplicado aluno de Bandeira nesse quesito. Também o poeta itabirano reuniu seus breves cantares d’amigos nos volumes Viola de Bolso (1952) e Viola de Bolso Novamente Encordoada (1955). O poeta se diverte rimando para os amigos e, como era de seu feitio, também dedicando a si mesmo seu velho sorriso zombeteiro.

Selecionei aqui uma série desses poemetos de Bandeira e Drummond. Os do mestre pernambucano foram extraídos de Estrela da Vida Inteira, que reúne toda a sua obra poética. Os textos de circunstância do mineiro vieram de sua Poesia Completa, com uma exceção: o poema dedicado à poeta Hilda Hilst
(1930-2004) é inédito em livro. Foi revelado pela própria homenageada após a morte do autor.

Alguns esclarecimentos. No poema "Susana de Melo Morais", Bandeira celebra o nascimento da cineasta Susana de Moraes (1940-255), primeira filha de Vinícius. (Bandeira grafa Morais com i, embora Vinicius o escreva com e.)

Na quadra "Antologia Poética", Drummond faz blague com o fato de coexistirem na livraria sua obra completa e sua antologia poética.  O poema seguinte é a dedicatória escrita pelo poeta no exemplar de Claro Enigma (1951) ofertado ao amigo e também poeta mineiro Emílio Moura (1902-1971). Agora, aqui entre nós, chamar o Claro Enigma de "livrinho falho"...

Uma última observação. Se os autores desses poemas não fossem os monstros sagrados que são, é bem provável que esses versos estivessem perdidos. Afinal, são textos que só o renome dos autores fez chegar ao prelo.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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EVENTO

Bienal de Poesia
Brasília, 3 a 7/9/2008

A Biblioteca Nacional de Brasília e vários parceiros promovem, de hoje a domingo, na capital federal, a I Bienal Internacional de Poesia de Brasília (I BIP). O evento soma-se à 27ª Feira do Livro de Brasília e ao Festival Internacional de Teatro de Brasília. A Bienal contará com a presença de poetas nacionais e estrangeiros e terá eventos em vários pontos da cidade. Para ter os detalhes da programação, confira na internet:

Site da Bienal
Blog com notícias do evento

  

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LANÇAMENTO

• Gilberto Nable
O Mago sem Pombos

Gilberto Nable - O Mago Sem Pombos (2008)O médico e poeta mineiro Gilberto Nable lança em Belo Horizonte, na próxima semana, sua nova coletânea de poemas, O Mago sem Pombos. O livro sai pela Editora 7Letras, do Rio de Janeiro, que também publicou o trabalho anterior de Nable, Percurso da Ausência (2006).

Data: 12/9, sexta-feira
Hora: A partir das 19h00
Local: Café Livraria Alexandrina
Rua Pernambuco, 797
Savassi
Tel. (31) 3261-2633
Belo Horizonte – MG

 


 

Poemas de circunstância

Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade

 


l Bandeira

"E eu, que sou Bandeira, / Embandeirei eu / Esta Lapa inteira". (Manuel Bandeira) - Quadro digital de Jamisson Pedra, 2004
 

SUSANA DE MELO MORAIS

Susana nasceu
Na segunda-feira.
E eu, que sou Bandeira,
Embandeirei eu
Esta Lapa inteira:
          Sus, Ana!

Não foi brincadeira:
Muito a mãe sofreu.
Gritava a enfermeira:
          Sus, Ana!

O pai escolheu
Um nome que cheira
À terra fagueira
Do senhor do céu.
É a glória primeira:
          Sus, Ana!



CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

O sentimento do mundo
É amargo, ó meu poeta irmão!
Se eu me chamasse Raimundo!...
Não, não era solução.
Para dizer a verdade,
O nome que invejo a fundo
É Carlos Drummond de Andrade.



SOLANGE

Para que não falem as más
Línguas, declaro aqui, Solange:
Não sou como os velhos gagás;
De Solange quero só l’ange.



MANUEL BANDEIRA

Manuel Bandeira
(Sousa Bandeira.
O nome inteiro
Tinha Carneiro.)
Eu me interrogo:
— Manuel Bandeira,
Quanta besteira!
Olha uma cousa:
Por que não ousa
Assinar logo
Manuel de Souza?




l Drummond

"Tanto vestido assinado / Cobre e recobre de vez / sua preclara nudez." (Drummond)  - Ilustração: Mulher, de Vânia Medeiros
A HILDA HILST

Abro a "Folha da Manhã".
Por entre espécies grã-finas,
emerge de musselinas
Hilda, estrela Aldebarã.

Tanto vestido assinado
cobre e recobre de vez
sua preclara nudez!
Me sinto mui perturbado.

Hilda girando em boates,
Hilda fazendo chacrinha,
Hilda dos outros, não minha...
(Coração que tanto bates!)

Mas chega o Natal e chama
à ordem Hilda: não vês
que nesses teus giroflês
esqueces quem tanto te ama?

Então Hilda, que é sabi(l)da,
usa sua arma secreta:
um beijo em Morse ao poeta.
Mas não me tapeias, Hilda.

Esclareçamos o assunto:
Nada de beijo postal.
No Distrito Federal,
o beijo é na boca — e junto.

Rio, 31.XII.52
 


ANTOLOGIA POÉTICA

— Não vai levar a Obra Completa?
diz o livreiro, em tom maior.
— Não. Levarei a Antologia,
por ser dos males o menor.



A EMÍLIO MOURA

Caro compadre Emílio,
se não lhe der trabalho,
guarde em seu domicílio
este livrinho falho.

De seu lugar na estante
(longe, a vida confusa),
como estará radiante
vendo, no espelho, a musa!



SAGARANA

Que mão sutil, quase divina,
de artista chim, em porcelana
da era dos Mings — fabulosa —
fora capaz dessa tão fina
maravilha de Sagarana?
Só mesmo tu, Guimarães Rosa.



SIGNOS

Ontem, hoje, amanhã: a vida inteira,
teu nome é para nós, Manuel, bandeira.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2008

Carlos Drummond de Andrade
•  Manuel Bandeira
    In Estrela da Vida Inteira
Poesias Reunidas
    seção "Mafuá do Malungo"
    José Olympio, 6a. ed., Rio de Janeiro, 1976
•  Carlos Drummond de Andrade
    In Poesia Completa
volume único
    seção "Viola de Bolso"
    Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2003
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* Mario Quintana, "A Oferenda" (poema completo)
  in Esconderijos do Tempo (1980)
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Ilustrações:
•  Bandeirolas, quadro digital de Jamisson Pedra (2004)
•  Mulher, de Vânia Medeiros