Número 259 - Ano 6

São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2008 

«Rosa, ó pura contradição, volúpia / de ser o sono de ninguém sob tantas / pálpebras.» (Rainer Maria Rilke) *
 


Mariana Botelho


Caros,

Às vésperas de completar seis anos de pastoreio poético com este boletim, sinto que esta página se renova ao apresentar a jovem poeta Mariana Botelho. Mineira da pequena Padre Paraíso, no Vale do Jequitinhonha, Mariana é formada em educação física e escreve desde os 12 anos.

"Foi nessa idade que comecei a cultivar o hábito de escrever em agendas e também a ler poetas como Fernando Pessoa, Vinicius de Moraes e Pablo Neruda", conta ela. Quem me chamou a atenção para os escritos de Mariana Botelho foi a poeta baiana Ana Cecília de Sousa Bastos.

Mariana Botelho é uma poeta da internet. Ela publica seus escritos no blog Suave Coisa. O que se destaca, de cara, em seus poemas é a predominância de procedimentos minimalistas. Em vez de fazer discursos, ela condensa quase tudo em frases curtas, levíssimas. Nesse tom, a partitura às vezes se aproxima do haikai, combinando climas subjetivos com movimentos da natureza: "tenho um outono no corpo / de onde as / coisas / caem".

Os quatro elementos comparecem com forte assiduidade nesses poemas, especialmente a água. Implícita ou nomeada, ela umedece (e às vezes encharca) a delicada poesia de Mariana Botelho. "Aquele cheiro de capim chovido", "eu choro  / pra pertencer à paisagem". "Ficamos ali / eu e meu corpo / cantando a plenitude do mato /depois da chuva". São poemas com cheiro de terra molhada, esse odor que o mundo urbano esconde atrás de suas máscaras de concreto e betume. 

Há também uma discreta sensualidade pagã que se insinua nos versos de Mariana, misturando céus e terra, a poesia no corpo e tudo formando o corpo da própria poesia: "um poema me deixou um sismo na carne / (...) / e traçou em minhas costas itinerários de espuma".

Não posso deixar de chamar a atenção para o excelente poema "Persona", que traz uma epígrafe de Mario Quintana. Libero-me de citar um ou outro trecho desse texto porque o melhor, mesmo, é apreciá-lo na íntegra.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•



LANÇAMENTO

Renata Pallotini
- Chocolate Amargo

Renata Pallottini - Chocolate Amargo
A poeta e teatróloga paulista Renata Pallottini lança seu novo livro de poemas, Chocolate Amargo, que sai pela Editora Brasiliense.

Data: 1/12, segunda-feira
Hora: 19h00
Local: Livraria Cultura - Paulista
Av. Paulista, 2073
Conjunto Nacional - Térreo
São Paulo – SP
 

Cheiro de terra molhada

Mariana Botelho

 



ABSTRATO

eu nunca beijei um poema.

no entanto ele está aqui
roçando leve minha
boca

nas horas dos
mais
doídos
silêncios


 

"com um gosto de cor / na boca / deixei cair pulsante / um / longo beijo / morno" (Mariana Botelho) - Ilustração: Vânia Medeiros, Pájaros en la Cabeza



ATO

um poema me deixou um sismo na carne
me arqueou o corpo
e traçou em minhas costas itinerários de espuma.

com um gosto de cor
na boca
deixei cair pulsante
um
longo beijo
morno
 



RESISTÊNCIA

um pote cheio
do furor que escorria dos teus olhos
guardei

porque gastamos todas
as nossas mãos

e restou inteiro
esse sentimento
enrugado

que não
passa




INTIMIDADE

um pequeno itinerário de passos
uma claustrofobia acariciada
gente que todo dia me bate
à porta e entrega-me os
cílios meus que encontraram
na calçada...

o dedinho de uma linda preta
com quem dividir os cílios caídos
com quem dividir o medo
de não sobreviver e de sofrer
a violência das crianças na escola.

aquela voz grave todas as manhãs
todas as manhãs
aquele cheiro só
aquele cheiro de capim chovido
os olhos negros do meu pai
e uma cidade íntima
soluçando dentro de mim.




CESARIANA

               para Pedro

seus pequenos olhos
cor de aurora represada
ainda que um dia se afastem
ficarão

nessa pequena cicatriz




[OS OLHOS DE MEU PAI]


os olhos do meu pai fincaram em mim duas colunas de óleo negro
buscando retalhos de amanhecimento

em vão

nada digo
que seja digno de claridade




NASCENTE

córrego
cachoeira
ribeirão

eu choro
pra pertencer à paisagem


 

ÁGUA

Água.

fui sentir o cheiro de
terra molhada.

ficamos ali
eu e meu corpo,
cantando a plenitude do mato
depois da chuva.

Água.

me amei.







[TUDO O QUE ME RESTA]

tudo o que me resta é dizer de um corpo que chora à margem de
                                                       [ um rio
esperando a sede.

porque a palavra me pega de dois jeitos:
de um jeito que não basta sabê-la;
de um jeito que me come.

tudo o que me resta é dizer de um corpo que chora à margem
esperando a sede
enquanto ouve a palavra: água





[TANTA COISA]

tanta coisa que fala no corpo

cala

na pequenina poesia




COISA QUE ME OCORREU DE REPENTE

a poesia se derrete nas mãos do poeta
como gato que ele afaga

a poesia queima nas mãos do poeta
como um fogo que ele alimenta

a poesia afoga as mãos do poeta
é um copo do oceano que ele mesmo inventa

o poeta é um mar de si mesmo.




[O SILÊNCIO]

o silêncio tange o
sino de tão
leve ninguém
escuta




PERSONA

                    o poema
                    essa estranha máscara
                    mais verdadeira do que a própria face
                             Mario Quintana


não é isso o que somos mas é assim que resistimos
porque fingimos que fingimos

empurramos nossos barcos contra as marés da aurora
para que a noite não passe

e continuemos despidos
 



ESTAÇÃO

tenho um outono no corpo
de onde as
coisas
caem

vejo doçura nas roupas
espalhadas
pelo
chão

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2008

Mariana Botelho
•  Poemas publicados no blog Suave Coisa
    (http://quelevequenada.blogspot.com)

    e gentilmente cedidos pela autora.
  
• Ilustrações: Vânia Medeiros
   www.flickr.com/photos/vania_medeiros
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* Rainer Maria Rilke, epitáfio. Esses versos fazem referência ao fato de o poeta ter-se ferido num espinho de rosa, o que agravou a leucemia de que sofria há tempos. Em seu túmulo estão esses versos que escreveu e deixou como epitáfio.