Número 261 - Ano 7

São Paulo, quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009 

«Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação.» (Carlos Drummond de Andrade) *
 


Cecília, Quintana, Borges, Pessoa, Sylvia, Bandeira e Éluard



Caros,


O poeta diante do espelho. A idéia desta edição me veio do poema "Mulher ao Espelho", de Cecília Meireles. Imediatamente me lembrei de outros textos com o mesmo assunto e estava dado o mote para este boletim.

Escolhi uma ponderável equipe de sete poetas do século XX. Além da brasileira Cecília Meireles (1901-1964), que foi o ponto de partida e esteve em destaque no último boletim de 2008, vieram o argentino Jorge Luis Borges
(1899-1986) e a americana Sylvia Plath (1932-1963), todos já publicados mais de uma vez neste periódico digital.

Inicialmente, o boletim ficaria apenas com esse trio poético. No entanto, expus ao escritor baiano Valdomiro Santana meu plano de organizar este boletim especular. Ele prontamente municiou-me com mais quatro poetas e poemas: Alberto Caeiro, a alma pagã do múltiplo Fernando Pessoa (1888-1935); o recifense que foi embora para  Pasárgada, Manuel Bandeira
(1886-1968); o surrealista francês Paul Éluard (1895-1952); e, por fim, o gaúcho Mario Quintana (1906-1994). Como se pode ver pelos links, também esses autores já apareceram aqui no boletim. De quebra, selecionei uma epígrafe de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).

Obviamente, como o olhar é de poetas, o espelho aqui vai muito além do que representa como objeto físico: uma superfície muito polida com alto índice de reflexão da luz. Como repetidor fiel de imagens, o espelho tem muito a nos dizer sobre o que somos, ou não somos. Ele reflete e nos faz refletir. Não somente a respeito daquilo que se revela com a luz, mas também muito do que guardamos nas sombras, como a vaidade. Não é por acaso que permanece ao longo dos séculos o mito grego do belo Narciso, aquele que, na canção de  Caetano Veloso, "acha feio o que não é espelho".

Outro ponto sobre o qual o espelho nos faz meditar é a passagem do tempo. Os poemas de Cecília Meireles, Sylvia Plath, Bandeira e Quintana tratam principalmente desse aspecto.

Borges não poderia faltar numa seleção de textos sobre espelho. O soneto transcrito aqui é apenas uma pálida amostra entre as dezenas de escritos dele sobre esse tema, que era uma verdadeira obsessão do mestre argentino. No caso do autor de Elogio da Sombra, o interesse pelo espelho se reveste de uma contradição particular, já que ele perdeu a visão, devido a uma cegueira progressiva herdada do pai. O próprio Borges, em outro soneto, "Um Cego", diz: "Não sei qual é o rosto que me mira / Quando miro o rosto do espelho".

O olhar de Alberto Caeiro é mais filosófico. Ele traça paralelos entre a fidelidade refletiva do espelho e o processo quase nunca objetivo do pensamento humano. Éluard encara o espelho sob o ângulo de que ele está sempre a nos chamar de volta à realidade. E essa realidade, por sua vez, está sempre marcada pelo fluir do tempo.

A respeito do poema de Éluard, vale citar uma curiosidade. Na luxuosa edição da editora Gallimard, de Paris, o sexto verso  (La pierre du movement et de la rue), traduzido por Cláudio Veiga como "A pedra do movimento e da rua", aparece como La pierre du movement et de la vue. Ou seja, em vez da rua, a vista (visão). A versão assumida por Veiga aparenta ser mais correta. De todo modo, fica o registro.

O tema do ser humano mirando-se no espelho é uma idéia arquetípica
e, portanto, recorrente. É bem provável que cada um de vocês conheça pelo menos mais um poema que poderia estar nesta seleção. Eu mesmo descobri mais alguns após o término deste boletim.

Um abraço a todos. É bom estar de volta a este convívio quinzenal.

Carlos Machado



                      •o•



 

Poemas diante do espelho

Cecília Meireles, Jorge Luis Borges, Sylvia Plath, Alberto Caeiro, Manuel Bandeira, Paul Éluard, Mario Quintana
 

 

 


Diego Velásquez - Vênus ao Espelho (1647)
Diego Velásquez, Vênus ao Espelho (1647)

 

l Cecília Meireles


MULHER AO ESPELHO

Hoje, que seja esta ou aquela,
pouco me importa.
Quero apenas parecer bela,
pois, seja qual for, estou morta.

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz,
já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.

Que mal fez essa cor fingida
do meu cabelo, e do meu rosto,
se é tudo tinta: o mundo, a vida,
o contentamento, o desgosto?

Por fora, serei como queira,
a moda, que vai me matando.
Que me levem pele e caveira
ao nada, não me importa quando.

Mas quem viu, tão dilacerados,
olhos, braços e sonhos seus,
e morreu pelos seus pecados,
falará com Deus.

Falará, coberta de luzes,
do alto penteado ao rubro artelho.
Porque uns expiram sobre cruzes,
outros, buscando-se no espelho.



John William Waterhouse, Eco e Narciso (1903)
John William Waterhouse, Eco e Narciso (1903)



l Jorge Luis Borges


AO ESPELHO

Por que persistes, incessante espelho?
Por que repetes, misterioso irmão,
O menor movimento de minha mão?
Por que na sombra o súbito reflexo?

És o outro eu sobre o qual fala o grego
E desde sempre espreitas. Na brunidura
Da água incerta ou do cristal que dura
Me buscas e é inútil estar cego.

O fato de não te ver e saber-te
Te agrega horror, coisa de magia que ousas
Multiplicar a cifra dessas coisas

Que somos e que abarcam nossa sorte.
Quando eu estiver morto, copiarás outro
E depois outro, e outro, e outro, e outro…



AL ESPEJO

¿Por qué persistes, incesante espejo?
¿Por qué duplicas, misterioso hermano,
el movimiento de mi mano?
¿Por qué en la sombra el súbito reflejo?

Eres el otro yo de que habla el griego
y acechas desde siempre. En la tersura
del agua incierta o del cristal que dura
me buscas y es inútil estar ciego.

El hecho de no verte y de saberte
te agrega horror, cosa de magia que osas
multiplicar la cifra de las cosas

que somos y que abarcan nuestra suerte.
Cuando esté muerto, copiarás a otro
y luego a otro, a otro, a otro, a otro…



l Sylvia Plath
 

ESPELHO

Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.

Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.


MIRROR

I am silver and exact. I have no preconceptions.
Whatever I see, I swallow immediately.
Just as it is, unmisted by love or dislike
I am not cruel, only truthful —
The eye of a little god, four-cornered.
Most of the time I meditate on the opposite wall.
It is pink, with speckles. I have looked at it so long
I think it is a part of my heart. But it flickers.
Faces and darkness separate us over and over.

Now I am a lake. A woman bends over me.
Searching my reaches for what she really is.
Then she turns to those liars, the candles or the moon.
I see her back, and reflect it faithfully
She rewards me with tears and an agitation of hands.
I am important to her. She comes and goes.
Each morning it is her face that replaces the darkness.
In me she has drowned a young girl, and in me an old woman
Rises toward her day after day, like a terrible fish.



Pablo Picasso, Moça Diante do Espelho, c. 1932
Pablo Picasso, Moça Diante do Espelho, c. 1932



l Alberto Caeiro


285

O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa.
Pensar é essencialmente errar.
Errar é essencialmente estar cego e surdo.

1/10/1917



l Manuel Bandeira


VERSOS DE NATAL

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho, amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste,
Descobririas o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera do Natal
Pensa ainda em pôr os seus sapatinhos atrás da porta.

1939



l Paul Éluard
 

ESPELHO DE UM MOMENTO

Ele dissipa a claridade
Mostra aos homens as imagens sutis da aparência
Arrebata aos homens a possibilidade de se distraírem.
É duro quanto a pedra,
A pedra informe,
A pedra do movimento e da rua,
E seu brilho é tal que todas as armaduras, todas as
     máscaras se deformam.
O que a mão tomou desdenha mesmo de tomar a forma da mão.
O que foi compreendido não existe mais,
A ave se confundiu com o vento,
O céu com sua verdade
O homem com sua realidade.


LE MIROIR D’UN MOMENT

Il dissipe le jour,
Il montre aux hommes les images déliées de l’apparence,
Il enlève aux hommes la possibilité de se distraire.
Il est dur comme la pierre,
La pierre informe,
La pierre du mouvement et de la rue,
Et son éclat est tel que toutes les armures, tous les
      masques en sont faussés.
Ce que la main a pris dédaigne même de pendre la
      forme de la main,
Ce qui a été compris n’existe plus,
L’oiseau s'est confondu avec le vent,
Le ciel avec sa vérité,
L’homme avec sa realité.




l Mario Quintana


O ESPELHO

E como eu passasse por diante do espelho
não vi meu quarto com as suas estantes
nem este meu rosto
onde escorre o tempo.

Vi primeiro uns retratos na parede:
janelas onde olham avós hirsutos
e as vovozinhas de saia-balão
Como pára-quedistas às avessas que subissem do
                                      fundo do tempo.

O relógio marcava a hora
mas não dizia o dia. O Tempo,
desconcertado,
estava parado.

Sim, estava parado
Em cima do telhado...
Como um catavento que perdeu as asas!

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2009

•  Cecília Meireles, "Mulher ao Espelho" (de Mar Absoluto, 1945)
    In Obra Poética
   
Nova Aguilar, 3a. ed., 6a. impr., Rio de Janeiro, 1987
•  Jorge Luis Borges, "Ao Espelho" (de O Ouro dos Tigres, 1972)
    In Obras Completas II
    Tradução do poema: Josely Vianna Baptista
    Ed. Globo, São Paulo, 2000
•  Sylvia Plath, "Espelho"
    In Poemas
    Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça
     Iluminuras, 2a. ed.,São Paulo, 1994
•  Alberto Caeiro, "285"  (de Poemas Completos de Alberto Caeiro)
    In Fernando Pessoa, Obra Poética
    Nova Aguilar, 7a. ed., Rio de Janeiro, 1977
•  Manuel Bandeira, "Espelho"
    In Poemas
    In Estrela da Vida Inteira
   
Record, Rio de Janeiro, s/data [aprox. 1998]
•  Paul Éluard, "Espelho de um Momento" (de Capital da Dor, 1926)
    In Poemas
    In Antologia da Poesia Francesa (do Século IV ao Século XX)
    Trad. e org. de Cláudio Veiga
   
Record, 2a. ed. ampliada, Rio de Janeiro, 1999
•  Mario Quintana, "O Espelho"
    (de Apontamentos de História Sobrenatural, 1926)
    In Poesia Completa
   
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2006
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* Carlos Drummond de Andrade, "Procura da Poesia",
  in A Rosa do Povo (1945)