Número 263 - Ano 7

São Paulo, quarta-feira, 18 de março de 2009 

«Quem acende um fósforo no escuro está inventando o fogo.» (Jorge Luis Borges) *
 

Ronaldo Costa Fernandes
Ronaldo Costa Fernandes


Caros,


Maranhense criado no Rio e radicado em Brasília, o poeta e romancista Ronaldo Costa Fernandes já apareceu aqui nesta página na edição n. 126, em julho de 2005. Agora ele volta, graças ao lançamento de A Máquina das Mãos (7Letras, 2009), sua nova coletânea de poemas.

Naquele boletim de quatro anos atrás, dizia-se que o poeta, andarilho e estrangeiro, seguia em busca do humano, perquirindo, indagando, mesmo sem esperar resposta. Em A Máquina das Mãos, o desassossego é o mesmo, a procura é idêntica. Com domínio ainda maior dos instrumentos, o poeta apresenta um universo real e sufocante, em versos que não foram feitos para integrar "o coro dos contentes". O que se encontra aí é uma poesia de mal-estar, de osso e alma perturbados — como aliás tende a ser toda grande poesia.

O olhar atento do poeta se mantém voltado para o incessante movimento da vida, representado tanto pelo que acontece nas ruas, no trem, na rodoviária, como as sensações que percorrem o fluxo íntimo do corpo. Desse modo, em cada verso encontra-se um naco de existência, uma gaiola vazia, uma sala de jantar, um relógio de ponto.

Mesmo quando o poema poderia resultar em algo puramente cerebral, o poeta consegue colocá-lo nos trilhos do cotidiano. Veja-se, por exemplo, o poema "Hopper", que alinha considerações sobre os quadros do americano Edward Hopper (1882-1967), pintor realista popularmente conhecido por ter pintado flagrantes do modo de vida de seu país. Na visão de Costa Fernandes,  os personagens dos quadros de Hopper somos nós. (A propósito, por causa desse poema, todas as ilustrações deste boletim são pinturas de Hopper.)

Um procedimento comum nos poemas de A Máquina das Mãos é o poeta partir de um fato particular e daí avançar para um desfecho mais amplo, existencial ou filosófico. É o que ocorre no poema "O Maratonista". O texto já se inicia com uma indagação: "que rumo persegue o maratonista, / avestruz no meio da rua?" E as perguntas se sucedem: "que logra o maratonista nesta longa / jornada dia adentro, / vestido de suor e magreza?" No final, o poema conclui que o atleta "desconhece que o corpo / é que é a pista de corrida da / maratona da vida". Poesia sem truques, sem malabarismos, na justa medida da emoção.

Como bem destaca o poeta paraibano Hildeberto Barbosa Filho, no posfácio de A Máquina das Mãos, Ronaldo Costa Fernandes está entre os que "sabem tocar o limite entre a falta e o excesso, evitando a obscuridade dita inventiva de um lado e, por outro, a facilidade expressiva, logrando, assim, na cartografia poética, o equilibrado encontro de forma e fundo, de linguagem e conteúdo, de estilo e temática".

É isso. Degustem, ao lado, algumas das engrenagens poéticas de A Máquina das Mãos. Essa máquina que se lava na "água da alegria", mas se lubrifica com  o "azeite do desengano". 

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•

 


LANÇAMENTO

Treze Poetas
Traçados Diversos


Treze Poetas - Traçados DiversosOs poetas Fabrício Corsaletti, Antonio Cicero, Fernando Paixão, Donizete Galvão, Annita Costa Malufe, Heitor Ferraz Mello, Ruy Proença, Fabio Weintraub, Ricardo Aleixo, Arnaldo Antunes, Chacal, Bruna Beber e Fabiano Calixto lançam Traçados Diversos Uma Antologia de Poesia Contemporânea. O livro sai pela Editora Scipione.

Data: 19/3, quinta-feira
Hora: 19h00
Local: Biblioteca Alceu Amoroso Lima
Rua Henrique Schaumann, 777
Pinheiros – São Paulo – SP




Manoel Ricardo de Lima
Quando Todos os Acidentes Acontecem

Os poeta e crítico literário Manoel Ricardo de Lima apresenta seu novo livro de poesia, Quando Todos os Acidentes Acontecem, publicado pela 7Letras.

Data: 23/3, segunda-feira
Hora: 19h00
Local: Pizzaria Urca
Av. Brigadeiro Luiz Antonio, 2401 (esquina com a Alameda Santos)
São Paulo – SP  Tel. 3289-0456



 

O azeite do desengano

Ronaldo Costa Fernandes

 



DEDOS

Meus dedos têm desertos.
Há areia fina na minha vontade.
Meus dedos são hipótese
como gaiola vazia.
Não têm tato,
só conhecem o tagarelar dos acenos.

Meus dedos demoram a pensar.
Têm memória curta.
Têm a surpresa do estalo,
mas não regulam bem,
cada qual em seu drama:
a polegada de vida medida,
o fura-bolo do desatino,
o maior-de-todos os descompassos,
seu-vizinho do medo de viver
e a vida mindinha que se leva.



..."no quarto / ou no vagão de trem / estão imobilizados de vida" Quadro: Edward Hopper, Chaircar (1960)
..."no quarto / no vagão de trem / estão imobilizados de vida"
Quadro: Edward Hopper, Chaircar (1960)




HOPPER

Em Hopper, não há a solidão que todos dizem.

Aquele casal na lanchonete,
as moças no quarto
ou no vagão de trem
estão imobilizados de vida
— de vida tão grave
que nada escapa (como nos buracos negros)
de seu campo de gravidade.

Ali estão os autômatos de Hopper
em sua fantástica viagem em torno de si mesmo.

Não é a vida americana
que é criticada.
O que nos desnorteia em Hopper
— e nos fascina —
é que nos vemos na lanchonete,
na parada de ônibus ou no vagão de trem.
Estamos imobilizados — hopperianos —
em têmpera e colorido,
fixos na tela do tempo,
e, irremediavelmente, presos a nós mesmos,
a vida como um quadro americano
do qual não podemos escapar.



O MARATONISTA

que rumo persegue o maratonista,
avestruz no meio da rua?
que explicação tem o maratonista
para inventar outra fisiologia
fazer das pernas um moto contínuo?
que logra o maratonista nesta longa
jornada dia adentro,
vestido de suor e magreza?
que espera o maratonista
em seu cronômetro de pulsações por minuto?
que sonha o maratonista
em sua luta contra o relógio
cujos ponteiros são as pernas?
Não sabe o maratonista
que passar a vida correndo
é ver a vida correr e passar,
ele, que impulsiona o corpo,
desconhece que o corpo
é que é a pista de corrida da
maratona da vida.



"penso na inutilidade cansativa de malas e hotéis" (Ronaldo Costa Fernandes) - Quadro: Edward Hopper, Hotel by a Railroad (1952)
"penso na inutilidade cansativa de malas e hotéis" 
Quadro: Edward Hopper, Hotel by a Railroad (1952)




FÉRIAS

Aqui, quieto em meu canto,
sem mexer-me, olhando a luz higiênica do sol,
penso na inutilidade cansativa de malas e hotéis
para divertir-me nas férias estrangeiras.
Não, só preciso da vontade,
nem sempre firme,
um vento estradeiro,
um alarde distante de pássaros
e nada além do meu corpo.



LAMENTO DO MENINO TRISTE

O azeite ainda se agarra
às paredes do frasco depois de esvaziado.
A água, leve, esvazia-se rápido,
às vezes até evapora, e não deixa resíduo,
nada se gruda à parede do frasco.
Ó mãe, faz permanecer em mim a água da alegria
e me livra do azeite do desengano.



RODOVIÁRIA

Daqui não se parte,
aqui não se chega,
há um tempo imóvel
em toda multidão de pés
de borracha, de pés de ardósia,
de pés mecânicos de escada,
porque aqui o que existe é
redemoinho de gente,
agitação febril que se consome,
o suor diário de cana,
o pastel diuturno da manhã,
a cabeça operária,
o relógio de ponto no pulso.

Nesta Rodoviária não há viagem,
todos estão paralisados numa cidade
operária; aqui mesmo parece ser
o destino e a partida,
vermes no estômago,
no ventre do tempo,
consumindo-se de si mesmo,
a Rodoviária para existir
necessita dessa fornalha de gente
para produzir o calor febril da cidade.
Mas aqui há também ócio
e malandragem — há o eterno
flâneur suburbano, de pente no cabelo,
masca o chicletes do conto do vigário,
os bolsos vazios de trama e promessa.



"Há lençóis de arame farpado / na cama de dois / que não são mais um." (Ronaldo Costa Fernandes) - Quadro:  Edward Hopper, Room in New York (1932)
"Há lençóis de arame farpado / na cama de dois / que não são mais um."
Quadro: Edward Hopper, Room in New York (1932)




POEMA SOBRE ARAMES

Há mãos farpadas
que não ouso tocar
assim como algumas
barbas que é o ódio
que escorre
das comissuras da boca.

Há lençóis de arame farpado
na cama de dois
que não são mais um.

Oh coleção de línguas
que ao lamber a carne
abrem feridas.

Já o arame dos teus olhos
são farpas que nada cercam.
Tuas cercas, até mesmo tuas cercas,
são mais vivas que as minhas.

Farpada é minha mente
que me fere quando penso
o que pensar não deveria.
 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2009

•  Ronaldo Costa Fernandes
    In A Máquina das Mãos
   
7Letras, Rio de Janeiro, 2009
______________
* Jorge Luis Borges (1899-1986), "A Felicidade", in A Cifra (1981)