Alberto Bresciani
Caros,
Nesta edição, o poesia.net destaca o trabalho do poeta carioca Alberto Bresciani
(1961-), um carioca há mais de duas décadas integrado às avenidas e superquadras
brasilienses. Magistrado de profissão, Bresciani investe muito de suas horas
livres na leitura de poesia. Conhece não apenas os clássicos, mas está sempre à
escuta de novas vozes e mais recentes refinações da palavra.
Embora escreva e se sinta envolvido com a poesia há bastante tempo, Bresciani
publicou seu livro de estreia, Incompleto Movimento, somente em 2011,
quando completou 50 anos. Autor de poemas curtos e frases parcimoniosas, o
poeta parece perseguir a essência do que pretende exprimir.
O que se encontra em Incompleto Movimento é uma poesia de perquirição do
avesso das coisas. “Só o que destila / por trás do que me é oculto / se esconde
à vista // É grampo no avesso / ― até a secreção” (Reinvenção). Para essa
tarefa de levantar véus e tentar expor à luz o lado obscuro de nossos passos e
vivências, o poeta se arma com a curiosidade e a obstinação de um
microbiologista.
Essa observação minuciosa está em cada um dos poemas. Até mesmo num poema
levemente erótico, percebe-se o silêncio e, num crescendo, “o pressentimento / o
pacto e o voo” (Harmonização). É sempre a sutileza, o cisco, o grão de pó, a
nota breve e leve, quase inaudível para ouvidos menos atentos e afinados.
Essa característica domina a maioria dos poemas enfeixados no livro de Bresciani.
As indagações existenciais percorrem a mesma pauta, sempre em tom menor: “Somos
ficção / Simulamos o invisível / e a imagem / no reflexo / do espelho”.
A poesia de Alberto Bresciani não é de leitura fácil nem de comunicação
imediata. Exige certa disposição do leitor para debruçar-se sobre o texto. Os
apressados, os que procuram extrair efeitos explosivos e imediatos, talvez se
cansem antes de alcançar o nível das sutilezas.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
O SERTÃO VIROU LIVRO
Uma história intrigante, que merece registro e admiração.
O lugarejo de São José do Paiaiá fica no município de Nova Soure, no sertão
baiano, quase na divisa com Sergipe, a cerca de 300 km de Salvador. Com 500
habitantes, Paiaiá tem o que os moradores chamam de a maior biblioteca rural do
mundo. De fato, trata-se de uma biblioteca cujo acervo já anda por volta dos 100
mil livros. Além de abrir as portas todos os dias, inclusive nos domingos, a
entidade oferece cursos de pintura e crochê e promove atividades culturais e
esportivas. Essa maravilha traz ao minúsculo Paiaiá estudantes da sede do
município e de vários lugares vizinhos.
Nem a criação nem o funcionamento da Biblioteca Comunitária Maria das Neves
Prado ― este é o nome oficial do colosso de Paiaiá ― se devem à iniciativa do
município, do Estado ou de qualquer órgão oficial. Tudo começou com a coleção de
livros pessoal de Geraldo Moreira Prado, um respeitável paiaiaense, hoje com 71
anos. Egresso do povoado aos 14 anos, ele estudou na USP nos anos 60 e depois
mudou-se para o Rio, onde se tornou professor universitário. Com recursos
próprios, Moreira Prado bancou o envio dos livros para o torrão natal, a
instalação, a manutenção e depois a expansão da biblioteca. Impressionado com a
iniciativa, o crítico literário Antonio Candido, que foi professor de Moreira
Prado na USP, doou à biblioteca uma parte de seus próprios livros.
Leia mais sobre a biblioteca de Paiaiá na reportagem
Livros brotam no sertão, da revista Piauí de fevereiro deste ano.
•o•
|
O avesso das coisas
|
Alberto Bresciani |
|
SEDIMENTOS
Aos poucos se apaga
o consentimento da morte
adio a noite, avanço
ao avesso do dentro
e encontro os encontros
do tempo, um gosto
de pele, um nexo
Faço oferendas
à água
ao fogo.
Gagik Maoukian (Armênia, 1952), Loving Couple, óleo sobre tela
HARMONIZAÇÃO
Demorasse a tua mão
um pouco mais
sobre o meu ombro
e me nasceriam asas
Em silêncio
logo o pressentimento
o pacto e o voo:
grades e escarpas
ruindo sob as pernas
cúmplices, entrelaçadas
as nossas.
REINVENÇÃO
Vertendo do branco:
eu, o anti-herói
preso a ganchos de ar
por sobre as fragas da razão
duras lâminas
que evisceram
a argamassa do corpo
a desbordar de mim
banal, rude, rala argila
não reluz. Só o que destila
por trás do que me é oculto
se esconde à vista
É grampo no avesso
— até a secreção
vir à voz, exposta
aos anjos e algozes
Então o instante que espero
quando me reinventam os dias
e as aves planam
sob o vulto explícito e sem sede
Gritem medos e mentiras
para o estômago do nunca
(o julgamento está surdo
e a tentação de não ser
para hoje
está morta
afogada).
POSSE
O ar é só pele:
teu corpo expira
das dobras do mapa
aquece os dedos
saliva doce na boca
as esferas do sal
A falta é tensão
teu vulto invasivo
conturbando o pulso
em pedras candentes
nas farpas da noite
O ventre esfria
e explode em tentáculos
da fluida água marinha
vertigem que plana e pesa
por sobre as vozes
os cortes do dia
— teu sempre
no fundo de mim.
METAMORFOSE
Era seu rosto
um campo de trigo
e manso se entregava
ao passeio da boca
Braços me protegiam
e enlaçavam
e devolviam ventos
que ninguém sentiu
Desdobrava-se
o seu consentimento
e sem proposições
uma supernova em mim
Talvez reencontrasse o destino
respirasse sem deformidades
talvez fosse apenas como voltar
E já não chovia
E era tão bom.
Wassily Kandinsky (1866-1944), russo
INVERSÃO
O esgotamento vem
do vazio
esse fundo
enredo de vozes
que uma só valem —
atrás dos nódulos do espanto
das folhas da súplica
e da sequência de sombras
sem volta,
a ilusão habita
a insônia
vergonha e ridículo
do homem parado
diante da pedra.
MIRAGEM
Somos ficção
Simulamos o invisível
e a imagem
no reflexo
do espelho —
ali nada há
como nada somos
Onde encontrar
a verdade
ou a real essência
desses fantoches
de nós mesmos
se os mistérios
não estão em lugar
mas no que mais fundo
escondemos?
|