Plínio Junqueira Smith
Caro,
Esta é a segunda vez que
o paulistano
Plínio Junqueira Smith (1964-) comparece a esta página eletrônica. Na primeira
vez, no
boletim n. 87, de 22/09/2004, ele aparece como tradutor do poeta
mexicano Eduardo Lizalde. Agora, JunqueiraSmith mostra sua própria poesia, com o
volume Corpo Estranho, publicado em 2011 pela editora Alameda.
Corpo Estranho é
um livro de poesia sui generis. Nele o poeta procura exprimir não o sublime, ou
o alumbramento, as saudades de um amor perdido, ou qualquer um desses
sentimentos fundamente enraizados no que vulgarmente se conhece como poesia.
Com humor, ironia e
certo grau de crueldade, o autor elege como tema a enfermidade, o mal-estar e,
em certo sentido, a possibilidade da morte. Como diz o filósofo Celso F.
Favaretto no prefácio do livro, "as dores do corpo", tematizadas por Junqueira
Smith, "alegorizam as dores da alma".
Ao trabalhar com uma
poesia que se afasta do belo, da música e do bem-dizer, o poeta realmente produz
um corpo estranho. Os poemas apresentam uma sucessão de termos médicos sombrios,
como linfomas, fibromatoses, pericardites e necroses. Entre as divisões do livro
estão "Poemas Odontológicos",
"Enfermidades Variadas" e "Poemas Oncológicos, I e II". Para confirmar a ironia, depois dessa devastação
hospitalar, a coletânea se fecha com um poema chamado Consolatio.
Pelo que se pode ver,
Junqueira Smith não nos oferece um volume para corações enamorados que suspiram
em balcões prateados pelo luar. Ao contrário: o que se encontra em Corpo
Estranho é uma poesia ancorada em certa crueza, que faz pensar na
fragilidade da vida e na finitude humana. Professor de filosofia da Universidade
Federal de São Paulo e ensaísta filosófico, o autor estende sua atividade
profissional
—
pensar
—
para o terreno da
poesia.
De onde
teria vindo a inspiração
do poeta para visitar assuntos tão soturnos? Por e-mail, ele me garante: "Quase
todos os poemas giram em torno de doenças minhas ou de alguém bem próximo".
Apesar do evidente sofrimento pessoal que essas experiências suscitam, os poemas
de Corpo Estranho não envolvem uma gota sequer de lamúria ou de
autopiedade.
Para este boletim,
selecionei uma amostra de sete poemas, que você pode ler ao lado. Observe como a
dor, expressa no papel, constitui também um incômodo
— não tão agudo, mas
igualmente real.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
ESCLARECIMENTO
Ao longo dos quase 10
anos do poesia.net, vários sites e blogs reproduziram os textos aqui
publicados. Nunca me incomodei com isso, acreditando que o fundamental é a
divulgação da poesia.
No entanto, observei recentemente que alguns sites
— entre eles páginas
ligadas a partidos políticos
— vêm reproduzindo o
poesia.net sistematicamente, sem me consultar nem fazer referência ao boletim ou
ao site de origem.
Não se trata de uma reivindicação autoral. O problema é que, transcritos os
textos com meu nome, quem os lê pode ter a impressão de que sou colaborador
regular dos sites repetidores. Não sou, não pretendo ser, nem tenho com eles
nenhum tipo de acordo. Faço estrita questão de dar este esclarecimento.
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Estranhezas do corpo
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Plínio Junqueira Smith
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PLACEBO?
Dói muito o teu dodói de alma?
Em seda e sedativo te protejas.
Sedax, meu coração,
sedolin, sedotex, sedomepril.
Carlos Drummond de Andrade
Acometido de muitas e graves doenças
— Sem esperança, um dos males de Pandora —
Submeti-me, voluntariamente,
A metódica pesquisa médica.
Uma doutora alta, cabelos negros e curtos
Com olhos penetrantes e lábios finos
— Em suma, uma perfeita musa —
Viu em mim todas as enfermidades
E receitou-me antigo e incerto remédio: a poesia
Esperando minha evolução para melhor avaliar o tratamento:
Eficácia, efeitos colaterais, interações medicamentosas.
Tomei-a diariamente, como recomendado.
Quero confessar, hoje, com sinceridade:
Não sei se me puseram no grupo controle
E se ingeri somente inócuo placebo
Em vez de poderosa substância química.
O fato é que, de algumas doenças,
Melhorei e julgo-me curado.
Ainda padeço daquela doença fundamental:
A existência e os afazeres do dia-a-dia.
Chidi Okoye, Trails of Dream -
acrílico sobre tela
CICLADOL
Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
João Cabral de Melo Neto
A vida, repleta de ciclos naturais,
Perpassada por dores constantes, firmadas era cartório,
Tem, na dor de dente, sua dor arquetípica.
Erijo, então, como o meu deus o cicladol.
A vida tem, na indigna dor de dente,
Na inflamação da polpa infectada,
Sua dor própria, seu batimento cardíaco.
Resta-me, então, o deus terreno: o divino cicladol.
Adormeço minha nova dor de dente,
A dor que mereço (dádiva que, da vida, me é devida),
A que, com a calcificação da polpa, dói em toda boca,
Apelando ao poderoso, mesmo se efêmero, deus cicladol.
Outra vez mais me dói o dente duro e cariado,
Desta vez, já não tão duro: o segundo molar,
Rachado na cúspide, com retração gengival.
Rezo, uma última vez, ao meu deus momentâneo, o cicladol.
PEDRAS NA VESÍCULA
Eu não poderia me imaginar tendo dores terríveis e,
enquanto durassem, me transformar numa pedra?
Wittgenstein
No princípio era a imagem:
Uma ressonância magnética
Com seu ruído ensurdecedor
De engrenagens sem graxa.
Outra imagem mais precisa:
Um ultrassom silencioso
Confirma em tom cinza
Prévia e infame suspeita.
A inflamação da vesícula
Resulta da pura realidade:
A pedra, seu real símbolo
É aqui somente pedra
Não a pedra-metáfora
Não a litografia da ciência
Mas o pedregulho vulgar
Com sua cláusula pétrea.
E a dor da pedra-pedra
É a própria pedra em flor
Desabrochando suas pétalas
Deitando raiz no meu âmago.
Michel Keck, #040632
GRIPE
Vos confesso que desejo
De cair convosco em cama
Camões
Acometido de uma forte gripe
Deitei-me solitário na cama
Com dores no corpo inteiro
Suando frio e tremendo todo.
Dia miserável, sem misericórdia:
Tosse, dor de garganta, febre;
Tentei em vão, retorcido, dormir
Torto, vi tevê a tarde toda.
Pensei na banalidade de uma gripe:
Uma bobagem, uma ninharia.
Culpo uma noite mal dormida,
Um contato fortuito na padaria.
Irritado com esse pensamento
Com a tolice de uma enfermidade
Que nem sequer é propriamente uma doença
Mas que nos deixa imprestáveis.
Assim é com muita coisa:
Um nada que tudo devora
Uma vertigem no nível do chão
Um vírus invisível que nos vira do avesso.
CONVULSÃO
Encrespa o corpo rígido
Treme a mão retesada
Súbito e ainda de pé
Já alheio ao mundo
Aos olhos arregalados
Dos amigos pasmos
Alguns espasmos ocorrem
E o corpo começa a cair...
Suavizada por mãos próximas
A queda sem seqüelas
Uma queda singular, única
Aproxima-o do chão.
Lá, de onde não se passa
Desprotegido, todo só
Convulsiona com impulsos inconstantes
Um corpo inconsciente.
ABSCESSO
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
e o pulmão direito infectado.
Manuel Bandeira
Ah, wherefore
with infection should he live
Shakespeare
Engana-se quem crê que o abscesso,
Essa obscena inflamação em meu rim,
E um acesso seguro à Ideia clara de tudo,
Ao enigma insolúvel da vida humana.
Um obsessivo amigo, médico ansioso,
Explicou-me: "trata-se, apenas, do resultado
De um processo limitado, quente e mole,
Que eventualmente gera septicemia.
Abscesso renal, piúria, Giordano positivo."
Tenho, então, distensão da cápsula renal
E, talvez, ainda precise de um rim vicariante.
Sentido da vida? "Nada a ver", assegurou-me.
"Contra um abscesso e seu pus", disse,
"De nada vale um antibiótico", e acrescentou:
"Para cortar-lhe a vida, deve-se usar
A eficaz lâmina afiada de um bisturi."
Diana Aprelskaya, Eternity,
acrílico, tela sobre cartão
ESCOMBROS
E se antes do que eu levares o abolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio.
Ricardo Reis
Diante do umbral
Do futuro mais obscuro,
Aquele do qual nada sei,
Suo frio.
Aturo a dúvida:
Se esse futuro é um fato,
Se colhemos o fruto maduro
Ou nosso fardo;
Se doloridos
Debitamos a doida dívida da vida
Ou se duramente pagamos
A fatura da farta existência.
Descubro-me frustrado e triste.
Afeito ao destino.
Não vislumbro
A deslumbrante paisagem
Já envolta no gigante véu
Dessa sombra divina
Que se projeta
Sobre a praia
Estreita e deserta.
De nada adianta
A diatribe
Contra a tribo dos deuses.
Não há hombridade
Em ombrear com o eterno,
E, de tal embate,
Restam entulhos e escombros.
Tropeço nos destroços.
Atribulam-me os atritos,
Da manga,
Mastigo só o caroço;
A fruta me escapa,
O incômodo fiapo
Engastalha
No vão do dente gasto.
A última enfermidade não tem cura.
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