Número 284 - Ano 11

São Paulo, quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

«Sempre haverá / uma voz / que te chama / de onde o prodígio / não veio.» (Francisco Carvalho) *
 

Ruy Espinheira Filho (1942-)
Ruy Espinheira Filho


Caros,

Apesar de algumas interrupções, o poesia.net completa 10 anos nesta data, 12 de dezembro de 2012. Neste decênio, centenas de poetas, brasileiros ou de outras plagas, clássicos, modernos, contemporâneos, passaram por esta página distribuída por e-mail e também pelo site Alguma Poesia. Num tempo em que tudo conspira contra a leitura, a reflexão e a poesia, parece-me justo comemorar esta data.

Esta celebração ganha mais peso e consistência quando se nota que, nesta mesma data, 12/12/12, o poeta, ensaísta, jornalista, cronista, contista e romancista baiano Ruy Espinheira Filho completa 70 anos de vida. Diante de tantos números e aniversários sincrônicos, o poeta desta edição só poderia ser o aniversariante, que já apareceu aqui no poesia.net n. 18.

Nascido em Salvador, no ano de 1942, Ruy Espinheira Filho passou a infância em Poções e a adolescência em Jequié, cidades do interior baiano. De volta a Salvador no início dos anos 60, graduou-se em jornalismo e obteve os títulos de mestre em ciências sociais e doutor em letras. Aposentou-se como professor de letras da Universidade Federal da Bahia.

A partir dos anos 60, Espinheira combinou a atuação no jornalismo com a produção literária. Estreou em livro em 1973, quando publicou o volume Poemas, em parceria com o poeta Antonio Brasileiro.
Até o momento, já publicou mais de vinte volumes de poemas e dez de ficção, sem contar os ensaios e participações em antologias.
 
Outra coincidência: está saindo a mais nova coletânea de Espinheira. É Estação Infinita e Outras Estações (capa ao lado), editada pela Bertrand Brasil. Esta obra, uma poesia completa, reúne todo o trabalho do poeta desde 1973.

Seu título mais recente de poemas, um pouco anterior à obra completa, é A Casa dos Nove Pinheiros, publicado este ano pela Dobra Editorial. Neste livro encontra-se o poema “De súbito, do nada, uma carta”, que escolhi para este boletim, como uma homenagem ao poeta e aos leitores.
 
Não há como ler este poema e sair incólume. Trata-se de um texto sofisticado que combina reflexões sobre a finitude humana e referências ao convívio e à amizade dos poetas modernistas portugueses Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Observe-se que, ao longo do texto, aparecem em destaque frases dos dois escritores lisboetas.

Ergamos, portanto, um brinde virtual aos dez anos do poesia.net e aos setent’anos (como diria Manuel Bandeira) do poeta Ruy Espinheira Filho!

Ao poeta, longa vida e muito obrigado pela poesia.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



                      •o•



 

Com Pessoa e Sá-Carneiro

Ruy Espinheira Filho

 


DE SÚBITO, DO NADA, UMA CARTA


1
Sá-Carneiro disse, em carta, não incomodá-lo muito a
                                                          [ possibilidade
de suicídio,
mas a consciência de
ter de morrer forçosamente um dia.
Seu correspondente deve ter pensado em tais palavras
                                                         [ muitas vezes
ao escrever certos versos,
como, por exemplo
(16 anos mais tarde, com a alma já por si conturbada
de Álvaro de Campos)
alguns de Tabacaria,
nos quais observou que o dono da loja morreria,
como ele próprio,
um deixando a tabuleta, o outro versos,
que a certa altura também morreriam,
como morreria depois a rua onde estivera a tabuleta
e a língua em que foram escritos os versos,
e, por fim, o planeta girante em que tudo isto se deu.
Sim, tais reflexões já tumultuavam Sá-Carneiro,
mas com menos longo sofrimento,
porque logo soube livrar-se delas com
cinco frascos de arseniato de estricnina
em 26 de abril de 1916,
aos 26 anos de idade.
às 8 da noite, no Hotel Nice,
Paris. E assim
terminou o tormento do Esfinge Gorda,
como certa vez se definiu.
E que ainda mais gorda e com mais mistérios de esfinge ficou,
após a morte,
avolumando-se a ponto de mal caber no caixão,
tornando definitivamente impossível que seu enterro fosse levado sobre um burro,
como pedira num poema,
embora tivesse lembrado
(como se antevendo sua última vontade
não sendo respeitada)
que a um morto nada se recusa,
e insistindo mesmo, peremptório:
E eu quero por força ir de burro.
(Não, ninguém se moveu para encontrar um burro capaz
de tal façanha,
ainda que não
como pedido
ajaezado à andaluza.
Sim, a um morto tudo pode ser
recusado.)
 


Yves Tanguy (1900-1955), americano, The furniture of time


2
Não sei como as linhas acima se escreveram,
pois não havia pensado em nada parecido.
Pelo que recordo, pensara que estava velho,
não propriamente por me sentir assim,
mas por constatar que de então a agora
passara muito tempo.
É a lógica, bastante desagradável:
se muito tempo passou desde a nossa juventude
não há o que discutir: estamos velhos.
Quanto mais tempo, mais velhos.
Sem dúvida, o que de melhor havia no Paraíso,
antes da descoberta do fruto do bem e do mal,
era a ausência de lógica. Não houve nenhuma lógica
na Criação,
as possíveis justificativas do Criador não têm lógica.
Apenas, entediado por tamanha Eternidade,
Ele resolveu brincar de Deus. E, como não havia
nenhuma lógica em tudo isso
(pois só uma absoluta falta de lógica admitiria a criação de algo
tão tentador que poria fatalmente em risco o equilíbrio do Éden),
deu no que deu.
 

Salvador Dalí (1904-1989), catalão, A persistência da memória
Salvador Dalí (1904-1989), catalão, A persistência da memória


3
Coisas assim é que eu pensava,
quando saltou do nada a carta do poeta
para outro poeta.
Assim me tem sido a vida com frequência:
tarda (às vezes indefinidamente) no que espero
e de súbito serve
o inesperado.
Tudo bem, contando que não venha a lógica
deduzir que eu tenha forçosamente de estar velho
já que de então a agora muito tempo passou.
O tempo, que se oferece ironicamente em Ontem
(que já não é),
Hoje
(que acabou de ser)
e Amanhã
(que, se chegar, não chegará,
pois logo será o que acabou de ser,
o que já não é).
Enfim, envolvido em incômodos
similares aos meus,
e em linguagem bem melhor,
suspirou Ricardo Reis: ... e quanto pouco falta
para o fim do futuro!
 


Joan Miró (1893-1983), catalão, O caçador



4
Ah, o quanto pouco falta...
Aliás, uma característica do tempo: subtrair-se avaramente,
sobretudo quando gostaríamos que permanecesse mais...
Difícil acreditar que faz pouco,
muito pouco,
estávamos todos aqui...
E então, de súbito,
tivemos e temos que
forçosamente
morrer...

5
Bem, Sá-Carneiro resolveu tudo por conta própria,
interrompendo o que sentia como apenas cruel alongamento
                                                                       [ do tempo;
apagando os remorsos que eram como
terraços sobre o Mar,
deixando-nos as palavras com que também gostaríamos de abrir
docemente
a nossa noite:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2012

Foto: Academia de Letras da Bahia

Ruy Espinheira Filho
•  A casa dos nove pinheiros
  
 Dobra Editorial, São Paulo, 2012
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* Francisco Carvalho, "Pomar Alheio",
in
O Silêncio é uma Figura Geométrica (2002)