Número 285 - Ano 11

São Paulo, quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

«A vida na vida só há ida, / não há retorno no que me torno.» (Ronaldo Costa Fernandes) *
 

Emílio Moura (1902-1971)
Emílio Moura


Caros,

Nesta edição, o poesia.net põe em primeiro plano, mais uma vez, o poeta mineiro Emílio Moura (1902-1971). Moura foi assunto de um dos primeiríssimos boletins, o n. 7, em fevereiro de 2003. Naquele momento, o poesia.net ainda buscava um formato próprio, e a página exibiu apenas um poema. Agora, quase dez anos depois, vale a pena revisitar a obra do poeta.

Emílio de Guimarães Moura nasceu em Dores do Indaiá, cidadezinha centro-mineira, que hoje tem cerca de 15 mil habitantes. Jornalista, foi redator dos cadernos literários de vários jornais mineiros e também professor universitário. Lecionou na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, da qual foi um dos fundadores e o primeiro diretor.
 



















Moura e Drummond, em 1932


Nascido no mesmo ano que Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura fez parte da geração modernista mineira, na qual se destacavam nomes como Pedro Nava, João Alphonsus (filho de Alphonsus de Guimaraens), Cyro dos Anjos, Aníbal Machado e Abgar Renault, além de Moura e Drummond. Em 1924, estes dois participaram da Revista, publicação literária modernista.

Ao contrário de quase todos os intelectuais mineiros de sua geração e mesmo das seguintes, Moura viveu a vida inteira em seu estado natal. Apesar da distância, sua amizade com Drummond permaneceu até a morte do poeta dorense.

Embora situada no modernismo, a poesia de Emílio Moura não se enquadra em algum modelo conhecido. No livro Confissões de Minas (1944), Drummond diz que ele tem traços de poeta espiritualista, mas não é bem isso. "Sua mística não é a de Deus, mas a do mistério". O itabirano conclui que Emílio Moura produz uma "poesia que não se satisfaz com a explicação materialista das coisas, mas que não nos conduz seguramente a nenhuma teologia".

Talvez por isso mesmo o próprio Drummond viria a dizer mais tarde no livro Passeios na Ilha (1952) que a poesia de Emílio Moura se colocava "sob o signo da pergunta". Com efeito, quem folheia a obra do homem de Dores do Indaiá observa que os poemas contêm numerosos sinais de interrogação. Em muitos casos, o poema inteiro é uma sucessão de indagações. Um exemplo, é o texto "Eliana e seu Reino", transcrito ao lado.

Eliana mostra também a propensão de Emílio Moura para a criação de mitologias. Eliana é uma mulher inventada, que engloba em si uma companheira terrena, a bem-amada, e ao mesmo tempo, um ser ideal e inatingível. “Mito e milagre / aurora e sonho”.

Atenta aos estados d’alma, a poesia de Emílio Moura tem o tom de música suave e nunca se lança em arroubos tonitruantes. Para Drummond, tanto a pessoa de Emílio Moura como sua poesia poderiam ser resumidas como música de câmara. “Peculiar surdina, íntimo violino, jeito manso de ser”.

É uma poesia que, mesmo situada no campo da música, prefere a voz do silêncio: “Tocai, tocai, ó flautas que ninguém ouve”, escreve Moura no poema “Noturno”.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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10 ANOS

Agradeço as quase duas centenas de mensagens saudando os 10 anos do poesia.net.




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poesia.net entra
em recesso

A todos os leitores do poesia.net desejo um ano novo com muita saúde, paz e poesia.

O boletim não circulará no período das festas.  


FELIZ 2013!
 


 

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LANÇAMENTO

Myriam Fraga
 Uma Casa de Palavras ‒
  25 Anos Depois


Dica para quem mora ou está em Salvador: a poeta Myriam Fraga lança nesta quarta-feira o livro Uma Casa de Palavras
25 Anos Depois, que conta a trajetória da Fundação Casa de Jorge Amado. Myriam Fraga já foi destaque em duas edições deste boletim, n. 13 e n. 273.

Data: 19/12, quarta-feira
Hora: Das 10h00 às 13h00 
Local: Fundação Casa de Jorge Amado
Pelourinho 
Salvador BA

 


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ADEUS A ILKA LAURITO

O poesia.net registra, com pesar, o falecimento da poeta paulistana Ilka Brunhilde Laurito, ocorrido no dia 11 deste mês. Nascida em 1925, Ilka estreou em 1948 com o livro Caminho. Professora, publicou, além de poesia, contos, crônicas e ficção juvenil. Para ler alguns poemas de Ilka Laurito, veja o boletim n. 117.

Sob o signo da pergunta

Emílio Moura

 



CANÇÃO

Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.

Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.

Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.

Viver não dói. O que dói,
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.

Que tudo o mais é perdido.



Helena Wierzbicki, argentina, Healing emotion, acrílico sobre tela
Helena Wierzbicki, argentina, Healing emotion, acrílico sobre tela



ELIANA E SEU REINO

Entre o sonho e a aurora,
forma-se a rosa,
mito e milagre,
aurora e sonho.

Entre o sonho e a aurora,
forma-se um reino,
alto, invisível,
teu reino, Eliana.

Eliana, filha da aurora,
Eliana, sílfide,
asa de ânfora, Eliana.

Quem descobriu Eliana?

Aves, que emudecestes:
Quem deu voz a Eliana?
Brisa sobre a relva:
Quem deu asa a Eliana?

E vós, tardes de abril,
manhãs de maio:
Quem deu alma a Eliana?

Eliana, corpo mágico:
salta da terra, é fonte,
voa da terra, é asa.

Se Eliana é a forma que não morre,
como atingi-la ou compreendê-la?

Se transcende a si mesma,
como invocá-la com palavras?

Aurora?
Fonte?

À medida que Eliana ascende,
como a luz é mais luz
e o tempo estático!



NOIVA

Caminhas para mim como uma colegial em férias.
Teu sorriso é tão puro que te ilumina toda.
És mito, mas toco-te;
realidade, te elevo e te transformo em sonho.

Por que não me revelas de onde surgiste e de que elementos te formaste?
Teus cabelos são nuvens?
Tua voz é de orvalho?

Quantas vezes me torturei inutilmente porque ainda estavas irrevelada,
— fonte oculta na mata, ária adormecida, estrela entre nuvens...

Dormias, Noiva?
Meu apelo te acorda e eis que sorris, de súbito.
E é como se eu nascesse agora.



Jangadas - Foto - Hugo Willian Cacho



SOLIDÃO

Trêmulas jangadas,
sempre sossegadas
sobre as ondas mansas:
por que não partis?
Que áureas esperanças
sopram no mar largo,
chegam como pássaros,
ninguém sabe de onde?

Trêmulas jangadas,
sempre sossegadas
sobre as ondas mansas:
que evocais ao luar?
Velhas esperanças,
chama que se finda,
ou vossa amargura,
mais íntima e pura,
vem da luz que ainda
bóia sobre o mar?

Trêmulas jangadas,
sempre abandonadas:
por que não largais?
Que áureas esperanças
vão para o mar largo,
voam como pássaros,
sobre as ondas mansas
para nunca mais!



NOTURNO

Tocai, tocai, ó flautas que ninguém ouve.
Silenciosas palavras que vos impregnais de eternidade:
falai ao nosso espírito.
Que carícia inesperada, que doçura tímida
nos pensamentos de jamais que ora regressam de ignorados ermos!

(Por que esta paisagem não se transfigura como se não houvesse tempo?)
Tocai, tocai, ó flautas que ainda guardais os velhos ritmos
de doces e antigas árias: tocai, tocai, de novo,
tocai até que a noite
seja apenas o antigamente
de vossa aérea e solitária música.



Casa onde nasceu Emílio Moura, em Dores do Indaiá - MG
Casa onde nasceu Emílio Moura, em Dores do Indaiá, MG



ÀS VEZES

Às vezes, subitamente, a poesia te visita.
Pura.
Infinitamente pura.
Como uma rosa.
Melhor ainda:
como a idéia de rosa.



A FÁBRICA DO POETA

Fabrico uma esperança
como quem apaga
algo sujo num muro,
e ali, rápido, escreve:
Futuro.

Fabrico uma pureza
tão menina,
tão cristal e tão fonte
que, de repente,
É meu todo o horizonte.

Fabrico uma alegria
que é de ver as coisas
como se só agora
é que nascesse
a aurora.

Fabrico uma certeza
exata
para cada instante.
A vida não está atrás,
Mas adiante.

Fabrico com o que tiro
de mim mesmo e do mundo
meu dia.
E ao que, em síntese, sou
junto o que queria.

Fabrico uma hora densa,
como quem te descobre.
Ah, quem diria
que essa hora imensa
já é poesia?



POESIA

Poesia, face secreta,
mas tão luz, se concebida.
Poesia, sentido pleno
do que há de vida na vida.

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2012

Emílio Moura
•  Itinerário Poéti
co – Poemas Reunidos
  
Editora UFMG, 2a. ed., Belo Horizonte, 2012
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* Ronaldo Costa Fernandes, "Tíquete para o futuro",
  in Memória dos Porcos (2012)
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Imagem 1: Helena Wierzbicki, Healing emotion
Imagem 2: Jangadas, Hugo Willian Cacho
Imagem 3: casa de Emílio Moura - Blog Dores do Indaiá