Número 289 - Ano 11

São Paulo, quarta-feira, 27 de março de 2013

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«Um arame farpado fere o horizonte.» (Jorge Luis Borges) *




Mariana Ianelli
Mariana Ianelli

 

Caros,

A regularidade de produção é um dado marcante no trabalho da poeta e jornalista paulistana Mariana Ianelli. Ela estreou aos 20 anos com o livro Trajetória de Antes (1999). Desde então vem publicando ao ritmo de um novo livro a cada dois anos. Até o momento, seu acervo inclui seis coletâneas, além do volume de estreia: Duas Chagas (2001); Passagens (2003); Fazer Silêncio (2005); Almádena (2007); Treva Alvorada (2010); e O Amor e Depois (2012).

Mariana Ianelli já apareceu aqui no boletim n. 202, de março de 2007, quando apresentei uma pequena seleção de poemas de seus quatro primeiros trabalhos poéticos. Nesta edição, todos os textos ao lado foram extraídos de seu livro mais recente, O Amor e Depois.

Desde o início, a poesia da autora se destaca pelo tom reflexivo, que assinalei no boletim de seis anos atrás e observo que permanece nos poemas de seu último livro. Neste, como o próprio título anuncia, o objeto principal das reflexões é o amor.



O texto “Descobrimento”, ao lado, trata da alvorada do amor. “E será algo tão novo / Como se nunca tivesse existido / Nunca tivesse nem mesmo / Sido desejado”. O amor chega com tal força e arrebatamento que é recebido como um prodígio da natureza, um prêmio pelo qual os amantes não tivessem empreendido nenhum esforço. Inaugura-se aí “a chance de tocar um mundo novo”.

É bonita e profunda a meditação que a poeta faz sobre o que subsiste ao amor, no poema “O Amor e Depois”. Parte da expectativa de que o sentimento, “aos poucos definhasse, fosse desaparecendo naturalmente”. Tudo então mergulharia em calma e do passado não restaria nem lembrança. Mas, lembra o texto, cada corpo carrega uma sombra e não é possível experimentar em vida a paz dos mortos. Portanto, o amor, mesmo amortecido, ainda punge e incomoda.

O poema “Arca da Lembrança” pode ser lido como uma continuação de “O Amor e Depois”. No barco naufragado, a saudade vai acumulando objetos que são sinais inequívocos de que o amor passou e contudo permanece ativo na memória.

Em “Fruto Caído”, comparece a morte, a força brutal que destrói inapelavelmente todos os amores, atuais ou passados, carnais ou platônicos. Observem a ambiguidade do primeiro verso: “Um dia uma paragem” — ou seja, um lugar ou uma parada. “E nada mais tem a cor do luto”. De fato, nada mais tem cor. Ponto.



Não se pode deixar de ressaltar que estamos diante de poemas sutis e trabalhados ao nível da minúcia. Em muitos casos, como em “Descobrimento” e em “Arca da Lembrança”, embora o plano de fundo seja o amor, esta palavra não aparece nenhuma vez no texto. Não é, como se pode ver, uma poesia para distraídos.


Um abraço, e até mais ler,

Carlos Machado

                    

                      •o•


boletim2013


Poesia.net
de cara nova


Vocês obviamente observaram: o boletim está de cara nova. Durante muito tempo, pensei numa forma de dar outra roupagem a esta página. Mas, por diferentes motivos, fui mantendo tudo como antes. Agora, resolvi reenfrentar o problema.

Depois de experimentar várias mudanças, cheguei à conclusão de que a estrutura geral do boletim não devia ser alterada. Parece-me bom ler os comentários à esquerda e ter, logo ao lado, a miniantologia com os textos do poeta em foco.

Também julguei interessante manter os rodapés, que são as áreas de créditos: bibliografia, autoria de fotos e ilustrações. As cores do texto e dos planos de fundo foram igualmente mantidas. Creio que sejam agradáveis de ver e de ler.

Desse modo, foram feitas apenas duas mudanças. A primeira, e mais óbvia, foi a troca do cabeçalho. Adotei a mesma ilustração do site Alguma Poesia, o que confere unidade aos dois projetos: o boletim que segue por e-mail e o espaço na web que abriga o poesia.net e outros itens poéticos.

A segunda, que talvez nem todos tenham percebido, é que a página ficou um pouco mais larga. Assim, será possível transcrever versos mais longos sem quebrá-los em duas linhas. Também as ilustrações poderão ser um pouco maiores.

Portanto, depois de dez anos com a mesma cara, o poesia.net, sem abrir mão de seus traços gerais, apresenta-se agora com uma aparência mais moderna e arejada.


                      •o•



 

Entre o orvalho e a névoa

Mariana Ianelli

 


COMPOSIÇÃO

A lenta e refinada arte
De fazer nascer um adágio —

Extrair o peso a cada pedra
E ver mais alto o edifício
A cada coisa abandonada
A cada rosto de si mesmo perdido —

Esse edifício transparente e musical
Onde se vê um pássaro sobre ruínas.



mist



DESCOBRIMENTO

Será como chegar extenuado,
Mas chegar.
Depois de uma viagem
Que foi quase sempre angústia
De se debater num mar adversário

E então o inexprimível
De pisar em terra firme
E ainda ser capaz do passo distraído.
Essa glória de juventude
De se deixar levar

E será algo tão novo
Como se nunca tivesse existido
Nunca tivesse nem mesmo
Sido desejado —

Um caminhar estrangeiro
Por entre o orvalho e a névoa,
Um frescor de primeiro dia,
Um momento sem passado,
A chance de tocar um mundo novo
Como dois azuis se podem tocar
Sem pecado.



O AMOR E DEPOIS

Era esperado que aos poucos
Definhasse, fosse desaparecendo
Naturalmente levado pelo sono.
Era suposto que por abandono
Morresse —

E não teria o vento nenhum sentido
De ventura, seria apenas
A passagem de uma hora branca,
Entre outras tantas,
Para um coração manso
Que já nada espera nem recorda —

Como se o tempo não devorasse
Também o desconsolo,
E dele fizesse exsudar um leve perfume,
Como se não arrastasse
Cada corpo uma penumbra,
Como se fosse possível
Em vida a paz dos mortos.

 

conchas


ARCA DA LEMBRANÇA

Um sol de opala se uma tarde é pasto da memória
Uma luz de chá dourando o canto cego de uma sala
E sobre a mesa o espelho d'água

A ocasião do ato secreto

De repovoar veredas, antros, mirantes do passado,
Saudade que vai juncando de ramos, conchas e corais
Todo o imenso dorso de um barco naufragado.



LÍRICA

Chegasse antes da hora
Eu te veria
No ato que sempre só imaginei —
Tua forma estólida, absorta,
Possuída
De um saber que livro algum
Jamais te deu.

Sem tocar teu corpo cântaro
Provaria
O sangue da tua meditação,
E aquele rancor sequer perdoado
A um morto
Num amor rebentaria.
Alheio ao teu juízo,
Como quem canta à noite
À boca de um poço
E pela voz de um outro
É correspondido.

Assim eu revelaria
O teu amor aos assassinos
Precipitando-se
Num rosto compassivo
Que me recebe na hora certa

E permite
Que o meu pensamento
Penetre o teu sem relutância
E faça contigo
Irremediavelmente
O que só um poeta faz
Com as palavras.
 

 
DEZEMBRO

Três e meia da tarde no relógio de parede
No fundo à esquerda de uma fotografia
E do teu rastro d'água contra um céu de dezembro
Nem o mais tênue vestígio.

Antes alguma âncora te prendesse.
Nada te prende. O que inspira
Não te move mas te apaga e dessedenta.
Um sol de dezembro. Um sol além do medo.



folhas de outono


FRUTO CAÍDO

Um dia uma paragem
Um rendilhado de sombras
Uma fonte na canção das folhas
E nada mais tem a cor do luto —

Um dia um fruto caído
O licor ungido na língua
O sangue fabricando amor
A morte é um escarlate súbito.


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2013




Foto Divulgação/ Petronio Cinque

Mariana Ianelli
•  O Amor e Depois
   
Iluminuras, São Paulo, 2012
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* Jorge Luis Borges, "Último Sol em Villa Ortúzar",
   in Lua Defronte (1925), trad. de Josely Vianna Baptista
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- Foto 1: Michael Andersen, "Mist"
- Foto 2: Belle News
- Foto 3: Autor desconhecido