Número 297 - Ano 11

São Paulo, quarta-feira, 6 de novembro de 2013

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«Que mistério há na carne? / Nela, que gosto de alma!» (Dante Milano) *

Affonso Manta (1939-2003)
Affonso Manta

 

Caros,

O que é um poeta? A rigor, não sei. A arte é sempre maior que as definições. Mas a falta de uma definição — ou de um manual de reconhecimento — não constitui nenhum empecilho quando estamos diante do trabalho de um verdadeiro poeta. E este é o caso do baiano Affonso Manta (1939-2003).

Travei o primeiro contato com a poesia de Manta no mesmo ano de sua morte. Na época, publiquei o boletim n. 48, dedicado a ele. Volto agora ao trabalho de Manta após a publicação de sua Antologia Poética, organizada por Ruy Espinheira Filho (poesia.net n. 18 e n. 284).

A distribuição dos textos feita por Espinheira Filho na Antologia ajuda a realçar o quanto de sensibilidade e invenção lírica existe no trabalho e na personalidade do poeta. “Lá vai, lá vai, lá vai Affonso Manta / Pela rua lilás”, escreve Manta. No mesmo poema, ele se autodefine como “o rei da extravagância, o sem maldade”.

Dono de todos os sonhos e investido de todas as forças líricas, no poema “O Cavalheiro sem Anéis”, ele também se retrata: “Eu sou a própria roupa do crepúsculo”. Neste decassílabo forte e desconcertante, a aliteração em “p”, combinada com os erres de “roupa” e dos encontros consonantais “cr” e “pr”, provoca uma sensação que só um poeta de ouvido refinado sabe extrair das palavras.

O verso estimula a imaginação. Que cor teria a roupa do crepúsculo? Talvez amarelo-sangue. Talvez púrpura com semitons de carmim, ou tudo isso mesclado. No estrato dos sons e (sugestão de) movimentos, a aliteração me leva a imaginar o poeta vestido com a capa — ou manta? — do entardecer drapejada pelo vento. Mas o texto, afinal, não autoriza a disjunção entre poeta e roupa: as duas entidades líricas são uma coisa só.

Além disso, a proparoxítona “crepúsculo” estabelece um fechamento brusco, mais agitado, como se uma lufada de vento mais forte sacudisse a roupa. É por isso que faz todo o sentido a afirmação no início do poema: “Quando me visto de pôr-do-sol / Os anjos ficam loucos”. Não é todo dia, nem todo ano, nem todo quinquênio que aparecem versos assim (pelo menos para este leitor, amador-profissional, do poesia.net).

“Eu sou a própria roupa do crepúsculo”. Beleza e angústia. Beleza angustiada.

“Nasceram-me gaivotas nos sentidos”. “Pouca coisa sei da vida. / O bastante para não correr”. “Crie canários verdes na varanda / Onde os meninos brincam de ciranda”.

Creio que os versos de Affonso Manta falam por si mesmos. Mas é impossível não destacar a musicalidade e a esperança triste contidas na canção “Quando Esta Noite Passar”. Até nos rabiscos, simples anotações, o poeta revela sua potência lírica e, mais que isso, sua profunda consciência sobre as possibilidades e limites do fazer poético. “Há que deixar em paz o poema. / Ou o poema nos afeta. / O poema há de ser perfeito. / Ou ele come o poeta”. Brilhante.

É por momentos de tal iridescência, para usar um termo mantiano, que o poeta Ruy Espinheira Filho diz no prefácio da Antologia que Affonso Manta foi um “conhecedor como poucos da arte do verso”. E diz mais: “Ele foi essencialmente poeta, como raros o são. João Guimarães Rosa dizia que as pessoas não morrem: ficam encantadas. Affonso Manta não esperou morrer para se encantar: foi um encantado a vida inteira”.


                      •o•


Affonso Manta nasceu em Salvador (BA), em 1939. Ainda bebê, mudou-se com a família para Poções, onde o pai, médico, iria trabalhar. Aos doze anos, volta para Salvador. Lá, terminou o curso clássico no Colégio Estadual da Bahia. Depois, entrou em Ciências Sociais na UFBA, mas não concluiu o curso. Professor, jornalista, funcionário público, Manta gostava mesmo era da boemia. Como diz o poeta Ruy Espinheira Filho, era um "boêmio impeninente". Viveu alguns anos no Rio de Janeiro, como inspetor dos Correios e Telégrafos. Morreu em Poções, em 2003.


                      •o•


Apenas um ponto a lamentar. Parte da coleção Mestres da Literatura Baiana, a Antologia Poética de Affonso Manta foi publicada pela Academia de Letras da Bahia com o patrocínio da Assembleia Legislativa do Estado. Como publicação oficial, fora de comércio, não vai chegar às livrarias. Chegará a bibliotecas e a uns poucos felizardos, entre os quais me incluo. Uma pena.

Poetas como Affonso Manta, assim como vários outros poetas-poetas destes Brasis, precisam ser retirados da virtual clandestinidade em que se encontram e divulgados para todo o país. Afinal, eles representam uma parte do que há de mais refinado no espírito brasileiro.


Um abraço, e até mais ler,

Carlos Machado

                    




                      •o•



 

Eu sou a roupa do crepúsculo

Affonso Manta

 




LÁ VAI AFFONSO MANTA

Com estrelas na testa de rapaz,
Com uma sede enorme na garganta,
Lá vai, lá vai, lá vai Affonso Manta
Pela rua lilás.

Coroa de alumínio sobre o crânio,
Lapelas enfeitadas de gerânios
E flechas no carcás.

Manto florido de madapolão,
Bengala marchetada de latão,
Desfila o marechal,

O rei da extravagância, o sem maldade,
O campeão da originalidade,
O peregrino astral.

                    (CM)


Arshille Gorki - Composição com Cabeça
Arshile Gorky, americano-armênio, Jardim em Sochi (1941)



O CAVALHEIRO SEM ANÉIS

Quando me visto de pôr-do-sol,
Os anjos ficam loucos.
Sobem nos trapézios de vidros
E saem a girar...

Girar...

Sou o Cavalheiro sem Anéis.
Sou órfão dos colarinhos de antigamente.
Minha voz se perdeu nas listras do arco-íris.
Meu sorriso nas cordas de um violino.
Sou o Cavalheiro sem Anéis.
Eu sou a própria roupa do crepúsculo.

Nem o vento sabe onde vou dormir.

                    (CMP)



O PRÍNCIPE LOUCO

                          para Ângelo Roberto

Acendeu uma rosa na cabeça
E saiu a dançar, iluminado,
Aquelas valsas tristes do passado,
Dizendo: "Que a aflição desapareça!

Eu sou a profecia que não erra.
Eu sou o rei ungido e coroado
Eu vou fazer o sol ficar parado.
Eu vou inaugurar a paz na terra.

Eu, o príncipe louco da Bahia,
Vou restabelecer a monarquia,
Num transe de poesia verdadeiro".

E foi pela cidade a declamar:
"Algum dia o sertão vai virar mar!"
Como se fosse Antonio Conselheiro.

                    (CMP)



Arshile Gorky - Organização
Arshile Gorky, Organização (1933-36)

 


RETORNO

                  O seio da mãe que simboliza o mar.
                         Carlos Anísio Melhor: "Elegia a Hart Crane"


Nasceram-me gaivotas nos sentidos
E, todo iridescente, fui ao mar
Buscar a vida e o sonho milenar,
Que jazem sob as águas esquecidos.

A luz da madrugada singular
Banhava os areais adormecidos.
E os ventos eram cães enlouquecidos
Uivando nos rochedos ao luar.

Eu me elevei ao mais alto rochedo
E, sem medir efeitos e sem medo,
Gritei uma palavra ritual.

O mar abriu-se, então, de lado a lado.
E eu mergulhei no abismo sossegado.
Como quem volta ao seu país natal.

                    (CMP)



CAIS

                          para Gato

Eu vou amanhecer no cais da aurora,
Com as minhas longas roupas de fumaça,
Para encontrar meu coração que chora
Por todos os caminhos onde passa.

Eu vou encher de vinho minha taça
E bebê-la na mais propícia hora
Até que o meu espírito se faça
Risonho e colorido como a flora.

Na popa de um saveiro luminoso,
Vou conhecer o cenário formoso
Das ilhas do Recôncavo singelo.

E, quando na tardinha eu regressar,
Verei o pôr-do-sol cair no mar
De cima do fortim de São Marcelo.

                    (CMP)



O APRENDIZ

Sou pobre realmente.
Tenho apenas algumas folhas de papel na alma
E uma vontade — digamos, mansa —
De hipnotizar borboletas.
Oue coisa sei da vida?
Pouca coisa sei da vida.
O bastante para não correr.

                    (RP)

 

Arshile Gorky - Agonia
Arshile Gorky, Agonia (1947)



QUANDO ESTA NOITE PASSAR...

Quando esta noite passar
Com sua carga de treva,
Com seu espesso veludo
Que te incomoda e te enerva,

A ti que estás todo preso
Numa sinistra gaiola,
Comendo o alpiste do dono
Do mundo que te viola;

Quando passar esta noite
Com seus frios caracóis
De angústia e desesperança,
Praga dos que vivem sós,

Quando esta noite passar,
Faz teu canto na manhã,
Que todo dia traz luz,
E não é vã, não é vã...

                    (RP)



O REI DOS LÍRIOS

O rei dos lírios quer me ver feliz
E que eu desfrute de um prazer sem fim.
Ele me deu cem mil maravedis
E comprou um castelo para mim.

O rei dos lírios quer me nomear
Embaixador no reino do Sião
Para que eu possa lá me consolar
Do tédio que corrói meu coração.

O rei dos lírios disse que vou ser
Um nobre em sua corte sideral,
Com direito a fazer e acontecer.
Livre de tudo que me cause mal.

E vai me dar, em bom jacarandá,
Uma cama onde eu possa dormir bem
E esquecer esta angústia que em mim há.
E por todos os séculos. Amém.

                    (RP)



ESSA MULHER

Essa mulher que paira docemente
Nos meus sonhos de amor tão erradios;
Essa deusa de lindos amavios,
Que me seduz o coração e a mente;

Essa ninfa dos prados e dos rios,
De rosto angelical e olhar ardente;
Essa do brilho místico e inocente
Estrela d'alva nos meus céus vazios;

Essa que me fez cartas delicadas,
Com frases meigas, como as namoradas,
E com doce emoção, como as amantes;

Essa mulher é como se uma aurora
Me iluminasse pela vida afora
E me sorrisse todos os instantes.

                    (CMP)




SETE

Sete colinas, sete serranias,
Sete montes de olvido e de quimera,
Sete neuroses e esquizofrenias,
Sete luzes no céu da primavera.

Sete cores do prisma, sete dias,
Sete anjos anunciando o fim da era,
Sete dores mortais, sete agonias,
Sete palmos de chão à nossa espera.

Sete livros secretos da doutrina,
Sete passos na estrada peregrina,
Sete cidades lá no Piauí.

E tu, que foste em mim sete moradas,
E és agora somente as punhaladas
Das sete angústias que sofro por ti.

                    (CMP)


DE UM RABISCO

Há que deixar em paz o poema.
Ou o poema nos afeta.
O poema há de ser perfeito.
Ou ele come o poeta.

                    (CC)



Arshile Gorky - Retrato de Ahko
Arshile Gorky, Retrato de Ahko (1937)



CRIAÇÃO


Crie canários verdes na varanda
Onde os meninos brincam de ciranda.

Crie esses bois de chifres de açucenas
Que pairam nos céus das manhãs serenas.

Crie cavalos da Andaluzia
Em sítios de cristal e fantasia.

Crie raiz no amor de uma mulher
E espere calmamente o que vier.

                    (CMP)



O PAI

Era em seu rosto curvo desenhada
A figura do Pai.
Morto faz muitos anos.
Criava pássaros na varanda
E meninos no quarto de dormir.

O Pai deixou muitas cartas na gaveta
E silêncio
No quarto de dormir.

O Pai de mãos ingênuas,
Feito de porcelana.
Olhar tão simples atrás dos óculos:
Parecia usar cartola de mágico.

O Pai
Acordava cedo como todo pássaro.

Às vezes interrompia o silêncio
Com risadas inexplicáveis.

                    (OC)




 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2013




Affonso Manta
•  Antologia Poética
    org. sel. e notas Ruy Espinheira Filho
    Assembleia Legislativa/Academia de Letras BA, Salvador, 2013

    Siglas dos Livros Originais:
    CC - Certas Coisas (poemas sem data)
    CM - A Cidade Mística - Poema Orgiástico em 4 Sonetos (1971)
    CMP - A Cidade Mística e Outros Poemas (1980)
    OC - O Colibri (1973)
    RP - O Retrato de um Poeta (1983)
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* Dante Milano, "Meditação da Carne",
  in Obra Reunida (2004)
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- Todas as imagens: pinturas de Arshile Gorky (1904-1948),
  americano nascido na Armênia