Número 301 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

poesia.net header

«A Paz é uma ficção da Fé.» (Emily Dickinson) *

Mario Quintana (1906-1994)
Mario Quintana



Caros,

Os versos "Eles passarão... / Eu passarinho!", do gaúcho Mario Quintana (1906-1994), hoje já circulam quase como um dito popular — aquela frase que muitos repetem mas nem todos têm conhecimento do autor. Esses versos pertencem ao "Poeminho do Contra".

Observem: "poeminho", e não poeminha. Trata-se de uma invenção do grande Quintana, o poeta do lirismo quase puro, capaz de agradar tanto a leitores especializadíssimos — a exemplo de Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira —, como a milhões de admiradores anônimos.

Não podia ser de outro jeito para um escritor que batizava seus livros com títulos tão intrigantes e sugestivos como Baú de Espantos, A Cor do Invisível, Da Preguiça como Método de Trabalho, Esconderijos do Tempo e Apontamentos de História Natural.

A simples menção desses títulos já constitui uma experiência poética. Qual será a cor do invisível? Como se estrutura esse maravilhoso método de trabalho baseado na preguiça? Onde ficam os esconderijos do tempo? Quais espantos estão guardados no baú de Quintana? Cada uma dessas perguntas constitui um deleite prévio para quem se aproxima do livro.

                      •o•

Não sei se Quintana chegou a definir em algum lugar o que entendia por “poeminho”. Mas não importa: é possível intuir que o poeminho seja um poema curto condimentado com os temperos da graça, ironia e pureza do lirismo quintaniano.

Com base nesse critério fluido, selecionei na Poesia Completa dele um punhado desses textos leves e graciosos que explicam e justificam a grande simpatia e acolhida que o poeta recebeu em vida e continuará a receber durante muito tempo.

É verdade, porém, que o próprio Quintana sugere que o poeminho seja uma espécie de cruzamento de poema com passarinho. É o que se pode extrair do penúltimo texto da pequena antologia ao lado. Mas o passarinho, que passa voando à toa, só vira poema depois de capturado pelo poeta e engaiolado no papel. Ai, sim, materializa-se o poeminho.

Parte dos textos ao lado vem do "Caderno H", título que tem, por si só, uma longa história. Quintana começou a usá-lo numa seção da Revista de São Pedro, de Porto Alegre, em 1945. O livro Sapato Florido, de 1948, contém material publicado naquela revista. A partir de 1953, o "Caderno H" passa a sair no jornal porto-alegrense Correio do Povo. Vinte anos depois, o poeta lançaria a primeira versão do livro Caderno H, que contém uma vasta coleção de textos, em verso ou em prosa poética, abrangendo os assuntos mais variados.

É indispensável lembrar que esta não é a primeira vez que o autor de Sapato Florido comparece a este boletim. Ele já esteve aqui em 2004, na edição n. 73.

Quintana dispensa comentários. Basta curti-lo, como um bom vinho.

Evoé, Quintana!



Um abraço, e até mais.

Carlos Machado

 


                      •o•

 

O verdadeiro imortal

O "Poeminho do Contra" também tem sua história. Mario Quintana, sabe-se lá por quê, candidatou-se três vezes à imortalidade da Academia Brasileira de Letras. Na primeira (em março, 1981), perdeu para Eduardo Portella, ex-ministro da Educação do general-presidente João Figueiredo. Depois (em novembro, 1982), foi derrotado pelo jornalista Carlos Castello Branco (1920-1993). Na última vez, a vaga foi para o professor carioca Arnaldo Niskier.

Diante da insensibilidade dos acadêmicos — que parecem votar com critérios como influência política, poder e prestígio social (e não os méritos literários), Quintana desistiu. E brindou os que lhe atravancaram o caminho com o delicioso e profético "Poeminha do Contra".

Eles passarão...
Eu passarinho!

                      •o•





poesia.net entra 
em recesso

A todos os leitores do poesia.net desejo um ano novo com muita saúde, paz e poesia.

O boletim não circulará no fim do ano e também no mês de janeiro.  


FELIZ 2014! 
 


Poeminhos do Quintana

Mario Quintana

 

 


POEMINHO DO CONTRA

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!

          De CH




A coisa mais solitária que existe é um solo de flauta.

          De CH

 

Tarsila do Amaral - Cartão Postal
Tarsila do Amaral, Cartão Postal



TIC-TAC


Esse tic-tac dos relógios é a máquina de costura do Tempo a fabricar mortalhas.


          De CH

 

RELÓGIO

O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede; conheço um que já devorou três gerações da minha família.

          De CH



COISAS NUMERADAS DE UM A TRINTA E CINCO

XIX

Um dia de chuva é bom para a gente comprar livros de poemas... Quem perguntar por que, de nada lhe adianta comprar um livro de poemas.


XXXII

Me lembro de um colega de ginásio que tirou da sua própria cachola e escrevia em seus cadernos e livros, com letra caprichada, o seguinte: "Estudo, és tudo!". Teve o fim que merecia.


          De CH



DA ARTE PURA

Dizem eles, os pintores, que o assunto não passa de uma falta de assunto: tudo é apenas um jogo de cores e volumes. Mas eu, humanamente, continuo desconfiando que deve haver alguma diferença entre uma mulher nua e uma abóbora.

          De CH



Tarsila do Amaral - A Caipirinha
Tarsila do Amaral, A Caipirinha


BIOGRAFIA

Entre o olhar suspeitoso da tia
E o olhar confiante do cão
O menino inventava a poesia...


          De AHS



A OFERENDA

Eu queria trazer-te uns versos muito lindos...
Trago-te estas mãos vazias
Que vão tomando a forma do teu seio.

          De ET



ANOTAÇÃO PARA UM POEMA

As mãos que dizem adeus são pássaros
Que vão morrendo lentamente


          De AVH



HORROR

Com os seus OO de espanto, seus RR guturais, seu hirto H, HORROR é uma palavra de cabelos em pé, assustada da própria significação.

          De SF



SEMPRE QUE CHOVE

Sempre que chove
Tudo faz tanto tempo...
E qualquer poema que acaso eu escreva
Vem sempre datado de 1779!

          De PV

 

Tarsila do Amaral - Natureza Morta com Relógios
Tarsila do Amaral, Natureza Morta com Relógios



OS RETRATOS

O pior de nossos retratos é que vão ficando cada dia mais jovens.
E chega um dia em que parecem nossos filhos...
E a gente os olha comovidamente, como se houvessem morrido há muito, sem plena mocidade. Os pobres-diabos!


          De DPMT



O ASSUNTO

E nunca me perguntes o assunto de um poema. Um poema sempre fala de outras coisas...

          De DPMT


DO TEMPO

Nunca se deve consultar o relógio perto de um defunto. É uma falta de tato, meu caro senhor... uma crueldade... uma imperdoável indelicadeza...

            De SF



?

Que artista teria inventado o nosso ponto de interrogação? Ele já tem a forma de uma orelha que escuta.


          De PG



IDADE

Estou nessa idade em que o juiz consulta o relógio e as arquibancadas já vão se esvaziando...

          De PG



O ESPELHO NO ESCURO

Um espelho no escuro aproveita a solidão da noite para refletir, de fato.

          De PG



HAIKAI DE OUTONO

Uma folha, ai,
melancolicamente
cai!


          De ACI



HAIKAI

Silenciosamente
sem um cacarejo
a noite põe o ovo da lua...

          De ACI


Uma das coisas que não consigo absolutamente compreender são os que se converteram a outras religiões.
Para que mudar de dúvidas?

          De CH

 

 

Tarsila do Amaral - Morro da Favela
Tarsila do Amaral, Morro da Favela

 


ANOITECER

Da chaminé da tua casa
Uma por uma
Vão brotando as estrelinhas...

          De ACI



O POEMA

O poema é um objeto súbito.
Os outros objetos já existiam...

          De CH

 

APONTAMENTO PARA UM POEMA

As águas riem como raparigas
à sombra verde-azul das samambaias.

          De CH


PASSEIO

Oh! Não há nada como um pé depois do outro...

          De SF

 

BAUDELAIRE

Baudelaire, fervoroso adepto e puxa-saco de Satã,
Meu Deus! Era demais até...
Mas Deus esperou pacientemente que ele morresse
E, para vingar-se dele de uma vez por todas,
O mandou para o Reino dos Céus!

          De VSD



ARTE POÉTICA

Esses poetas que tudo dizem
Nada conseguem dizer:
Estão fazendo apenas relatórios...

          De VSD



PAUSA

Às vezes, nos dias calmos, apenas se nota uma leve ondulação na relva: são os cavalos do vento que estão pastando.

          De Poemas para a Infância



QUE HAVERÁ NO CÉU?

Se não houver cadeiras de balanço no Céu... que será da tia Élida, que foi para o Céu?

          De SF



CLOPT! CLOPT!


É a ruazinha que tosse, tosse, engasgada com o homem da muleta.

          De SF

 


UMA VACA

Sim, uma vaca — uma abençoada vaca — muge...
O seu mugido é um rio de veludo morno.

          De CH

 

O DESINFELIZ

Sua vida era um tango argentino.

          De SF



O PRINCÍPIO


Se antes era o Nada, como já poderia haver Alguém para tirar dele o mundo?

          De CH



O OUTRO MUNDO

Por favor, deixa o Outro Mundo em paz! O mistério está aqui.

          De CH

Tarsila do Amaral - O Mamoeiro
Tarsila do Amaral, O Mamoeiro



POEMA

Oh! aquele menininho que dizia
"Fessora, eu posso ir lá fora?"
mas apenas ficava um momento
bebendo o vento azul...
Agora não preciso pedir licença a ninguém.
Mesmo porque não existe paisagem lá fora:
somente cimento.
O vento não mais me fareja a face como um cão amigo...
Mas o azul irreversível persiste em meus olhos.


          De AVH



FATALIDADE


Em todos os velórios há sempre uma senhora gorda que, em determinado momento, suspira e diz:

— Coitado! Descansou...

          De SF

 


UMA ESTATÍSTICA

As crianças,
sem um tiro aliás,
e isso
é que tornava o caso ainda mais espantoso,
morriam mais do que índios nos filmes norte-americanos,
e quando a gente acaso perguntava, para se mostrar atenciosos
"Quantos filhos a senhora tem, comadre?"
A comadre respondia, com ternura:
"Eu tenho quatro filhos e nove anjinhos".

 

MENTIRA?

A mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.

          De SF



PASSARINHO

Sempre me pareceu que um poema era algo assim como um passarinho engaiolado. E que, para apanhá-lo vivo, era preciso um meticuloso cuidado que nem todos têm. Poema não se pega a tiro. Nem a laço. Nem a grito. Não, o grito é o que mais o mata. É preciso esperá-lo com paciência e silenciosamente como um gato.

Ora, pensava eu tudo isso e o céu também, quando topo com uns versos de Raymond Queneau, que confirmam muito da minha cinegética transcendental. Eis por que aqui os traduzo, ou os adapto, e os adoto, sem data venia:

Meu Deus, que vontade me deu de escrever um poeminho...
Olha, agora mesmo vai passando um!
Pst pst pst
vem para cá para que eu te enfie
na fieira de meus outros poemas
vem cá para que eu te entube
nos comprimidos de minhas obras completas
vem cá para que eu te empoete
para que eu te enrime
para que eu te enritme
para que eu te enlire
para que eu te empégase
para que eu te enverse
para quo eu te emprose
vem cá...
Vaca!
Escafedeu-se.

          De AVH


CALIGRAFIAS

Delícia de olhar no céu os v v v dos voos distanciando-se.

          De AVH

 

 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2013





•  Mario Quintana
    Poesia Completa
    Nova Aguilar, 1a. ed., 1a. reimpr., Rio de Janeiro, 2006    
  
 
Siglas dos livros originais:
    SF - Sapato Florido (1948)
    CH - Caderno H (1973)
    AHS - Apontamentos de História Sobrenatural (1976)
    AVH - A Vaca e o Hipogrifo (1977)
    PV - Preparativos de Viagem (1987)
    DPMT - Da Preguiça como Método de Trabalho (1987)
    PG - Porta Giratória (1988)
    ACI - A Cor do Invisível (1989)
    VSD - Velório Sem Defunto (1990)
______________
* Emily Dickinson, trad. de José Lira, in A Branca Voz da Solidão

______________
Todas as imagens são pinturas da modernista Tarsila do Amaral
(Capivari-SP, 1886-São Paulo-SP, 1973)