Número 303 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

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«Eliana, corpo mágico: / salta da terra, é fonte, / voa da terra, é asa.» (Emílio Moura)  *

Camilo Pessanha (1867-1926)
Camilo Pessanha

 

Caros,

Dono de uma trajetória de vida considerada exótica, o português Camilo Pessanha (1867-1926) é reverenciado como o mais autêntico representante do simbolismo em seu país. Nascido em Coimbra — filho de um estudante de direito com uma doméstica —, ele formou-se em direito em 1891.

Em 1894, devido a uma desilusão amorosa, mudou-se para a colônia portuguesa de Macau, na China, onde exerceu diversas atividades, tais como advogado, professor de filosofia, defensor público e conservador do registro predial.

Após mudar-se para Macau e até 1915, o poeta voltou algumas vezes a Portugal, para tratamento de saúde. Certa vez, foi apresentado a Fernando Pessoa, que, assim como Mário de Sá-Carneiro, admirava sua poesia.

Literariamente, Camilo Pessanha representou fundamental influência para a geração da revista Orpheu, à qual pertenceram poetas de primeiríssima importância como os citados Pessoa e Sá-Carneiro. O único livro deixado por ele foi Clepsidra, publicado (sem sua participação) pela escritora Ana de Castro Osório. Para montar o volume, ela colecionou textos autógrafos do autor e material publicado em jornais. Antes de partir para Macau, Pessanha chegara a pedir Ana Osório em casamento, mas ela recusou por já estar comprometida.

Em Macau, Pessanha casou-se com uma mulher local com quem teve vários filhos. Aprendeu chinês e mergulhou na cultura macauense, tornando-se respeitado na colônia. Escreveu um alentado conjunto de estudos e ensaios sobre a literatura e a cultura chinesas. O poeta assimilou tanto a cultura da terra que se tornou usuário habitual de ópio, prática que deixou sua saúde mais frágil. Morreu de tuberculose.

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Embora frequentemente referido como soneto, o poema “Ao longe os barcos de flores” tem apenas treze versos. Mas nele o que realmente se destaca são os efeitos musicais. A insistente aliteração do primeiro verso — sons sibilantes e fricativos — estabelece uma atmosfera de aparente serenidade e devaneio.

O mesmo timbre musical perpassa todo o poema, marcado por outras aliterações, como em “Festões de som dissimulando a hora” ou em “Na orgia, ao longe, que em clarões cintila”. É o tipo de poema que, para ser bem apreciado, sugere que se faça uma leitura em voz alta. Assim pode-se ouvir o sopro da flauta e seus efeitos mais estrídulos (“tranquila”, “exila”, “cintila”, “trila”), tudo formando, como diz o poeta, “festões de som” – ou seja, arranjos de flores sonoras.

Para reforçar o aspecto melódico, observe que os dois primeiros versos se repetem, fechando o segundo quarteto. E o texto se fecha como um círculo, pois o primeiro verso volta a aparecer como o último do poema. É como uma partitura que trouxesse a instrução da capo, orientando o músico para reexecutar a composição desde o começo.

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Os barcos de flores são menos ingênuos do que a que expressão pode sugerir. Segundo os estudiosos, trata-se na verdade de um eufemismo para bordéis flutuantes que existiram no sul da China até meados do século XX. Também as pessoas e objetos que surgem no texto são alvo de muitas interpretações.

Para alguns, estão disseminados no poema muitos símbolos convencionais da cultura chinesa. Em chinês, o termo “flor”, por exemplo, poderia estar ligado semanticamente à ideia de mulher jovem e também de fumo, vapor, ópio. Desse modo, o som da flauta que “só, incessante, chora” seria uma metáfora para a voz do poeta exilado num país e numa cultura distantes.

Para os mesmos estudiosos, a flauta tocada pela jovem-flor também teria insinuações de natureza erótica. Além disso, em chinês o branco é a cor do luto. Daí a ideia da “viúva grácil”, que tanto pode ser a rapariga que faz planger a flauta, como a própria voz do instrumento... Mas ficam no ar as perguntas: “A flauta flébil... Quem há-de remi-la? / Quem sabe a dor que sem razão deplora?”

Enfim, como afirmou certa vez Gilles Deleuze (1925-1995), “a obra de arte não contém, estritamente, nenhuma informação”. Então, o que importa, fundamentalmente, num poema como “Ao Longe os Barcos de Flores” é a combinação de música e encantamento que oferece. A música acima de tudo, como propunha o mestre simbolista Paul Verlaine.

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Devido à proximidade musical, saltemos para o último poema. Aqui, o instrumento é outro: em lugar da flauta, o violoncelo. Mantém-se o clima de solidão e desconsolo, sucessão desencontrada de coisas que se chocam como num trecho nervoso de uma sinfonia: “Trêmulos astros, / Soidões lacustres... / — Lemes e mastros... / E os alabastros / Dos balaústres!”. Mais uma vez, leia em voz alta. Você pode não colar exatamente uma ideia sua a estes versos. Mas sabe, sem dúvida, que neles existe algo de envolvente. Música? Poesia?

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Em “[Singra o navio. Sob a água clara]”, a música também está presente. Os versos são fluidos e luminosos. Em meio a uma pura descrição de paisagem marinha, três versos (exatamente os dois trechos iniciados por um travessão) apresentam a visão direta de um observador. É como se o poema todo constituísse um retrato objetivo, interrompido apenas por aquelas duas considerações que dão o ponto de vista de alguém, que pode ser o mesmo autor da descrição. Nelas, há uma afirmação de saudade (“a distância sem fim que nos separa”) e desilusão (“ó fúlgida visão, linda mentira”) de certo modo já anunciados no texto pretensamente objetivo: “tantos naufrágios, perdições, destroços!”.

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Outra vez, em “[Na cadeia os bandidos presos!]”, uma situação de traços objetivos é usada pelo poeta para expressar um sentimento íntimo. Neste caso, é o coração que se sente prisioneiro, saudoso, revoltado. Diante da pesada disciplina carcerária, no entanto, o dono desse coração que ameaça arrebentar em tumulto recomenda-lhe calma para não sofrer ainda mais: “Pschiu! Não batas... Devagarinho... / Olha os soldados, as algemas!”


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

                    


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VOCÊ CONSTRUI?

Uma curiosidade linguística. Alguns leitores, após a circulação deste boletim, me mandaram mensagem apontando "erro de digitação" neste verso de Camilo Pessanha, do poema [Singra o navio. Sob a água clara]:

E a vista sonda, reconstrui, compara

Não, não existe nenhum erro no verso. Pessanha escreveu-o assim.

O verbo construir (e derivados) é conjugado somente como irregular no Brasil. Em Portugal, no entanto, também se usa esse verbo como regular: eu construo, tu construis, ele construi, nós construímos, vós construís, eles construem.

Ao longe os barcos de flores

Camilo Pessanha

 


AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,
— Perdida voz que de entre as mais se exila,
— Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...



Miró - O Campo Lavrado (1923-24)
Joan Miró, catalão, O Campo Lavrado (1923-24)





[SINGRA O NAVIO. SOB A ÁGUA CLARA]


Singra o navio. Sob a água clara
Vê-se o fundo do mar, de areia fina...
Impecável figura peregrina,
A distância sem fim que nos separa!

Seixinhos da mais alva porcelana,
Conchinhas tenuemente cor de rosa,
Na fria transparência luminosa
Repousam, fundos, sob a água plana.

E a vista sonda, reconstrui, compara,
Tantos naufrágios, perdições, destroços!
Ó fúlgida visão, linda mentira!

Róseas unhinhas que a maré partira...
Dentinhos que o vaivém desengastara...
Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos...
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Joan Miró - O jardim
Joan Miró, O Jardim (1925)



[NA CADEIA OS BANDIDOS PRESOS!]

Na cadeia os bandidos presos!
O seu ar de contemplativos!
Que é das flores de olhos acesos?!
Pobres dos seus olhos cativos.
Passeiam mudos entre as grades,
Parecem peixes num aquário.
— Campo florido das Saudades,
Por que rebentas tumultuário?
Serenos... Serenos... Serenos...
Trouxe-os algemados a escolta.
— Estranha taça de venenos
Meu coração sempre em revolta.
Coração, quietinho... quietinho...
Por que te insurges e blasfemas?
Pschiu... Não batas... Devagarinho...
Olha os soldados, as algemas!


 

 

Joan Miró - Composição (1933)
Joan Miró, Composição (1933)



[IMAGENS QUE PASSAIS PELA RETINA]


Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, por que não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...

Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
Por que ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
Estranha sombra em movimentos vãos.



Miró - O Carnaval de Arlequim
Joan Miró, O Carnaval de Arlequim (1924-25)



VIOLONCELO

Chorai arcadas
Do violoncelo!
Convulsionadas,
Pontes aladas
De pesadelo...

De que esvoaçam,
Brancos, os arcos...
Por baixo passam,
Se despedaçam,
No rio, os barcos.

Fundas, soluçam
Caudais de choro...
Que ruínas, (ouçam)!
Se se debruçam,
Que sorvedouro!...

Trêmulos astros,
Soidões lacustres...
— Lemes e mastros...
E os alabastros
Dos balaústres!

Urnas quebradas!
Blocos de gelo...
— Chorai arcadas,
Despedaçadas,
Do violoncelo.

 

 

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Carlos Machado, 2014




Camilo Pessanha
•  Clepsidra (1922)
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* Emílio Moura, "Eliana e seu Reino", em Itinerário Poético (2002)
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- Todas as imagens: Joan Miró (1893-1983), catalão