Número 306 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 2 de abril de 2014

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«A minha pátria é onde o vento passa.» (Sophia de Mello Breyner Andresen) *

Emily Dickinson
Emily Dickinson

 

Caros,

Quase 130 anos depois de sua morte, a poeta americana Emily Dickinson (1830-1886) continua a causar espanto e admiração. Sua mais nova proeza — quer dizer, sua proeza só agora revelada — são os textos que os críticos vêm chamando de poemas-envelope.

Descobriu-se recentemente que Emily reaproveitava os envelopes postais que recebia, escrevendo neles poemas e anotações. Esses envelopes, assim como todo o acervo da poeta, estão na biblioteca do Amherst College, instituição da cidade-natal de Emily, onde ela estudou, em Amherst, Massachusetts.

Nos Estados Unidos, saiu, agora no final de 2013, um livro chamado The Gorgeous Nothings (algo como “Os magníficos nadas”) que reúne o material de Emily escrito nesses envelopes.



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Mostro aqui dois poemas-envelope. Um diz, singelamente:

One note from
one bird
is better than
a million words.


Em tradução despretensiosa, seria: “Uma só nota / de um passarinho / é melhor que / um milhão de palavras”. Simples, fácil. Mas como dizer isso em português com a mesma concisão e rimas? Que outro, não eu, a pedra corte.

O segundo poema também não é complicado, mas contém referência à História americana.

Not to send
errands by John
Alden is
one of the
instructions
of History.



Outra vez, em tradução literal: “Não confiar / tarefas a John / Alden é / um dos / ensinamentos / da História”. Aqui, algum esclarecimento se impõe. Um episódio fundamental da História dos Estados Unidos é a chegada em 1620 do navio inglês Mayflower, com 102 passageiros vindos da Inglaterra.

Esses migrantes estabeleceram-se onde hoje é o estado de Massachusetts e foram os primeiros ingleses a chegar à colônia. Na maioria, eram famílias puritanas — protestantes radicais — que não queriam se dobrar à Igreja Anglicana.

O John Alden citado no poema era carpinteiro náutico e foi contratado na Inglaterra para fazer a manutenção do Mayflower durante toda a viagem. Portanto, ele deveria vir ao Novo Mundo e retornar com o navio. Era tripulante, e não passageiro. Só que Alden tinha outros planos: resolveu “fazer a América”, casou-se depois com uma das passageiras, e nunca mais retornou ao seu país. Por isso é que o poema, ironicamente, sugere que não se deve confiar em John Alden.



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Poeta das mais lidas e admiradas nos Estados Unidos, Emily Dickinson é traduzida no mundo inteiro. Também no Brasil, já existe um considerável número de traduções de seus poemas, divulgadas tanto em livros como na internet. Talvez o primeiro a notá-la tenha sido Manuel Bandeira, que verteu cinco textos dela, incluídos no volume Poemas Traduzidos. Mas a admiração pela chamada Bela de Amherst aparentemente só cresce, e há sempre novos tradutores interessados em transpor seus versos para o português.

Somente neste boletim contamos com o trabalho de três tradutores: os paulistanos Augusto de Campos e Isa Mara Lando e a fluminense Aíla de Oliveira Gomes (1921-1992).


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Muito do que se conhece da vida de Emily Dickinson foi extraído de suas cartas. Embora ela tenha vivido reclusa na casa da família ― especialmente em seus últimos anos ―, mantinha intensa correspondência com amigos. A única foto reconhecida de Emily é um daguerreótipo produzido quando ela tinha por volta de 16 anos. Trata-se da foto que abre este boletim e é reproduzida ao lado em toda a sua extensão. Não vou me alongar nos dados biográficos da autora, nem nas características de sua poesia. Isso já foi feito no primeiro boletim sobre ela, o poesia.net n. 67, de maio/2004.


Recentemente, localizaram-se dois outros retratos que se acredita sejam dela, mas a autenticidade dessas imagens não foi comprovada. O mais recente, descoberto em 2012, mostra uma amiga de Emily, Kate Scott Turner Anthon e a suposta Emily, mais velha, aproximadamente em 1859. Análises comparativas dessa foto com a de Emily adolescente, feitas por oftalmologistas, levam a crer que seja de fato a poeta. De todas as descobertas esta é a que talvez esteja mais próxima de uma possível autenticação.


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Os organizadores da obra de Emily Dickinson catalogaram quase 1800 poemas, que estão reunidos em sua poesia completa. Para facilitar a identificação — já que a autora nunca dava título aos textos —, cada poema passou a ser identificado por um número. Neste boletim, sigo essa numeração, mesmo quando o tradutor não a utilizou. Na verdade, dos três tradutores, somente Aíla de Oliveira Gomes registra o número de identificação ao pé de cada poema.



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“Aonde quer que eu vá, descubro que um poeta esteve lá antes de mim.” Com esta frase, Sigmund Freud, o criador da psicanálise, destaca a capacidade dos grandes poetas de antecipar, com sua intuição, ideias e conceitos que em muitos casos cientistas e pensadores só vão formular tempos depois.

No boletim n. 70 (maio, 2004), mostrei um exemplo do poder da intuição poética de Emily Dickinson. Ali era uma nota solta. Repito-o aqui em local mais adequado, um boletim inteiramente dedicado a ela.


POESIA QUÂNTICA

«Quanto mais precisamente a posição [de uma partícula subatômica] é determinada, menos precisamente, no mesmo instante, seu momento [massa x velocidade] é conhecido, e vice-versa.»
           Werner Heisenberg, 1927

A frase acima é parte de um texto no qual o cientista alemão Werner Heisenberg (1901-1976) enuncia o célebre Princípio da Incerteza — concepção de enormes implicações para a ciência física. Um dos motivos para essa incerteza, ou indeterminação, está no tamanho minúsculo dos objetos observados — um elétron, por exemplo. Os próprios instrumentos utilizados para medir a posição ou a velocidade do elétron interferem no comportamento da partícula.

Que os físicos me perdoem a imprecisão do que escrevi acima. Mas meu ponto de chegada não é a física, e sim a poesia. Observem este trecho de um poema de Emily Dickinson:

A percepção de um Objeto
custa justo a perda do Objeto.


Emily, à sua maneira e antes de Heisenberg, já sabia enunciar o Princípio da Incerteza! O enunciado de Emily está no poema 1071, transcrito ao lado no original e em versão de Aíla de Oliveira Gomes.



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Se no poema 1071 Emily invade a praia dos físicos, no poema 642 ela entra sem pedir licença no gabinete do Dr. Freud, antes mesmo de ele sonhar com a criação da psicanálise. Esse texto foi escrito possivelmente em 1862, quando o futuro neurologista vienense tinha apenas 6 anos de idade. Nele, o embate entre instâncias da personalidade – Eu e Mim, Me and Myself – é algo para a atenção dos psicanalistas.

O recolhimento em que viveu durante quase toda a vida deu a Emily Dickinson condições para refletir sobre muitas questões complicadas. Assim, ela percebe poeticamente que o sucesso soa mais doce, mais apetitoso, para quem nunca o alcançou (poema 67).

No poema 288, Emily discute sobre algo bem fronteiro ao sucesso: a fama. O mesmo tema volta a aparecer no poema 1763. Neste, a poeta, que em geral apresenta uma postura grave, aparece muito bem-humorada. Conforme sua visão, a fama é como a abelha: tem canção, tem ferrão e também tem asa: chega e logo pode ir embora.



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A originalidade de certas imagens criadas por Emily Dickinson é impressionante. No poema 80, ela compara nossas vidas a Suíças frias, separadas da Itália e do calor mediterrâneo pelas cortinas dos Alpes. Em suma, o lugar real onde vivemos e o lugar com o qual sonhamos. Em dias mais claros, abre-se uma nesga nas cortinas nevoentas e conseguimos enxergar mais longe. Mas os Alpes são também montanhas maciças a barrar o caminho até o mar ensolarado.



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Embora seus poemas passem longe de ser crônicas do cotidiano, A Dama de Branco – outro epíteto usado para ela (porque, recolhida em casa, só usava roupas brancas) — também sabia observar como poucos os movimentos da vida comum, especialmente quando se referiam a um de seus temas prediletos: a morte. O poema 389 é um exemplo disso.



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Para os mais curiosos, a coleção completa dos poemas de Emily (são exatos 1775 poemas, nos quais não estão incluídos os envelopes recém-descobertos) encontra-se no site American Poems, organizados segundo os números de identificação de que falei mais acima.


Um abraço, e até mais ler,

Carlos Machado

                    

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SUTILÍSSIMA FERIDA

Após a circulação deste boletim, tive o prazer de receber a seguinte mensagem de Isa Mara Lando, uma das tradutoras citadas:


"Prezado Carlos Machado,

Gratíssima por incluir minhas traduções no boletim. Estou na excelente companhia de Augusto de Campos e Aíla de Oliveira Gomes. Se eu puder dar uma sugestão, gostaria que entrasse a tradução livre incluída nos adendos de meu livro para o poema 108, o último do boletim.

Isa Mara Lando"


Em seu livro Loucas Noites – Wild Nights, a tradutora explica: ao verter o poema 108, não encontrou, em quatro versos, uma solução que atendesse à rima original de Emily Dickinson: knife/life. Por isso, fez também uma versão livre, na qual usou a licença de incluir um verso extra para garantir a presença da rima.

Prometi a ela que incluiria no site a versão "estendida" da tradução. Assim, o poema 108 aparece ao lado em duas traduções.


Os magníficos nadas

Emily Dickinson

Traduções de Augusto de Campos,
Aíla de Oliveira Gomes e Isa Mara Lando
 



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 Augusto de Campos
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67

O Sucesso é mais doce
A quem nunca sucede.
A compreensão do néctar
Requer severa sede.

Ninguém da Hoste ignara
Que hoje desfila em Glória
pode entender a clara
Derrota da Vitória.

Como esse — moribundo —
Em cujo ouvido o escasso
Eco oco do triunfo
Passa como um fracasso!



67

Success is counted sweetest
By those who ne'er succeed.
To comprehend a nectar
Requires sorest need.

Not one of all the purple Host
Who took the Flag today
Can tell the definition
So clear of Victory

As he defeated — dying —
On whose forbidden ear
The distant strains of triumph
Burst agonized and clear!


(c. 1859)


Emily Dickinson - John Alden
Reprodução fotográfica de um dos poemas-envelope de Emily Dickinson: não confiar tarefas a John Alden, escrito por volta de 1880




288

Não sou Ninguém! Quem é você?
Ninguém — Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!

Que triste — ser — Alguém!
Que pública — a Fama —
Dizer seu nome — como a Rã —
Para as palmas da Lama!



288

I'm Nobody! Who are you?
Are you — Nobody — Too?
Then there's a pair of us!
Don't tell! they'd advertise — you know!

How dreary — to be — Somebody!
How public — like a Frog —
To tell one's name — the livelong June —
To an admiring Bog!

(c. 1861)



642

Banir a Mim — de Mim —
Fosse eu Capaz —
Fortim inacessível
Ao Eu Audaz —

Mas se meu Eu — Me assalta —
Como ter paz
Salvo se a Consciência
Submissa jaz?

E se ambos somos Rei
Que outro Fim
Salvo abdicar-
Me de Mim?



642

Me from Myself — to banish —
Had I Art —
Impregnable my Fortress
Unto All Heart —

But since Myself — assault Me —
How have I peace
Except by subjugating
Consciousness?

And since We're mutual Monarch
How this be
Except by Abdication —
Me — of Me?


(c. 1862)


1222

O Enigma decifrado
Despreza-se com pressa —
A Surpresa de Ontem
Já não nos interessa —



1222

The Riddle we can guess
We speedily despise —
Not anything is stale so long
As Yesterday's surprise —


(c. 1870)



Dickinson daguerreótipo
Foto oficial — e única — de Emily Dickinson: daguerreótipo produzido quando a escritora tinha cerca de 16 anos



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 Aíla de Oliveira Gomes
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389

Houve morte na casa ali defronte —
Foi hoje, coisa recente;
Eu sei por esse ar de anestesia
Que dessas casas recende.

Vizinhos em sussurros entram e saem,
De carro afasta-se o médico,
Uma janela se abre como vagem,
De modo abrupto, automático,

E por ela atiram fora um colchão.
Crianças passam correndo —
Intrigadas — "foi ali que morreu?"
Eu ficava assim, me lembro.

Formal e teso vai entrando o clérigo,
Qual se sua a casa fosse —
Hoje são dele todos os que choram
E das crianças toma posse.

Vem o homem do armarinho — e aquele homem
Da horrorosa profissão —
O que toma as medidas para a casa.
Vai haver a soturna procissão —

Vão vir os coches, as franjas douradas
Sem nem cartaz ou rumor,
Corre fácil a intuição das notícias
Nas vilas do interior.

(c. 1862)



389

There's been a Death, in the Opposite House,
As lately as Today —
I know it, by the numb look
Such Houses have — alway —

The Neighbors rustle in and out —
The Doctor — drives away —
A Window opens like a Pod —
Abrupt — mechanically —

Somebody flings a Mattress out —
The Children hurry by —
They wonder if it died — on that —
I used to — when a Boy —

The Minister — goes stiffly in —
As if the House were His —
And He owned all the Mourners — now —
And little Boys — besides —

And then the Milliner — and the Man
Of the Appalling Trade —
To take the measure of the House —
There'll be that Dark Parade —

Of Tassels — and of Coaches — soon —
It's easy as a Sign —
The Intuition of the News —
In just a Country Town —



1071

A percepção de um Objeto custa
Justo a perda do Objeto.
A percepção é, em si mesma, um ganho
Respondendo por seu preço.

O Objeto Absoluto — é nada —
A Percepção é que o revela —
Depois censura a Perfeição
Que tão longe se encastela.


1071

Perception of an Object costs
Precise the Object's loss —
Perception in itself a Gain
Replying to its Price —

The Object Absolute — is nought —
Perception sets it fair
And then upbraids a Perfectness
That situates so far —



Possível foto de Emily Dickinson com amiga
Foto recém-descoberta que se acredita ser de Emily Dickinson (à esquerda). A outra mulher, disso não há dúvida, é Kate Scott Turner Anthon, uma amiga. A data: 1859, quando Emily tinha 29 anos

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 Isa Mara Lando
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80

Nossas vidas são Suíças —
Tão quietas — tão Frias —
Até que uma tarde vem
Soltam os Alpes as suas Cortinas
E divisamos mais além!

A Itália fica do outro lado!
Qual sentinelas, porém
Os Alpes solenes
Os Alpes sirenes
Para sempre intervêm!


80

Our lives are Swiss —
So still — so Cool —
Till some odd afternoon
The Alps neglect their Curtains
And we look farther on!

Italy stands the other side!
While like a guard between —
The solemn Alps —
The siren Alps
Forever intervene!



1763

Fama, o que é?
Como abelha, vai e vem —
Tem canção —
Tem ferrão —
Ah, tem asa também.


1763

Fame is a bee.
It has a song —
It has a sting —
And, too, it has a wing.




182

Se eu não estiver mais viva
Quando vierem os Passarinhos
Dá ao de Lencinho Carmesim
Uma migalha, por mim.

E se eu não te agradecer
Imersa num sono infinito
Saiba que o tento fazer
Com meu lábio de Granito!


182

If I shouldn't be alive
When the Robins come,
Give the one in Red Cravat,
A Memorial crumb.

If I couldn't thank you,
Being fast asleep,
You will know I'm trying
Why my Granite lip!




108

Tem cuidado, cirurgião
Ao tomar o bisturi!
Sob a tua fina incisão
Se agita a Culpada — a Vida!




108 (versão livre)

Tem cuidado, cirurgião
Ao tomar o bisturi!
Sob a tua fina incisão
— Sutilíssima ferida —
Se agita a Culpada — a Vida!



108

Surgeons must be very careful
When they take the knife!
Underneath their fine incisions
Stirs the Culprit — Life!



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014




Emily Dickinson
•  Traduções de Augusto de Campos
    Emily Dickinson: Não Sou Ninguém - Poemas
   
Editora da Unicamp, Campinas-SP, 2008
•  Traduções de Aíla de Oliveira Gomes
    Emily Dickinson: Uma Centena de Poemas
   
Editora da USP, São Paulo, 1984
•  Traduções de Isa Mara Lando
    Emily Dickinson: Loucas Noites – Wild Nights
   
Disal Editora, Barueri-SP, 2010
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* Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), portuguesa,
  no poema "Pirata"