Número 315 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 6 de agosto de 2014

«Oh abre os vidros de loção / e abafa / o insuportável mau cheiro da memória.» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Da Costa e Silva



Caros,

Nascido em Amarante, PI, o poeta simbolista Antônio Francisco da Costa e Silva, conhecido apenas por Da Costa e Silva (1885-1950), formou-se advogado pela Escola de Direito do Recife. Foi funcionário do Ministério da Fazenda e trabalhou em vários estados, como Maranhão, Amazonas, São Paulo e Rio Grande do Sul.

Na poesia, estreou com o livro Sangue (1908), ao qual se seguiram os volumes Zodíaco (1917), Verhaeren (1917), Pandora (1919) e Verônica (1927). Suas Poesias Completas já tiveram quatro edições: em 1950, 1975, 1985 e 2000.

Da Costa e Silva é pai do também poeta, diplomata e especialista em estudos africanos Alberto da Costa e Silva, já boletinizado no poesia.net n. 205. Alberto, aliás, merecidamente, foi agraciado com o Prêmio Camões de 2014.

Sobre o pai, Da Costa e Silva, já falei no Facebook, destacando um de seus poemas, a canção “Sombra e Névoa”, que também incluo nesta mínima antologia do poeta piauiense. Esse poema constitui uma pequena joia do simbolismo brasileiro. Singela e musical, ressoa em nossos ouvidos com a mesma graça de alguns dos versos de Verlaine, um dos mestres maiores do simbolismo francês.

Cai o crepúsculo. Chove.
Sobe a névoa... A sombra desce...
Como a tarde me entristece!
Como a chuva me comove!


O andamento é tipicamente simbolista, outonal, penumbroso. No quarteto acima, os dois primeiros versos fazem referência a uma situação externa, atmosférica. As duas linhas seguintes mostram como esse dado objetivo se reflete no ânimo da voz que fala no poema. O segundo quarteto repete essa mescla do que há lá fora/aqui dentro. Por fim, o terceiro é apenas a expressão lírica do sujeito.

Fiel à expressão simbolista, o poema “Sou como o Rio Misterioso...” (atenção para as reticências, outra marca registrada dos simbolistas) mantém o mesmo clima de névoas, mágoas, sofrimentos etéreos.

Do mesmo modo, no soneto “[Eu sou tal qual o Parnaíba]” ― como sempre, refiro-me aos textos sem título usando o primeiro verso, entre colchetes ― Da Costa e Silva atribui ao rio Parnaíba sentimentos idênticos ao da persona que se expressa no poema. E, para variar, esses sentimentos são de pura melancolia. “Parece até que o rio tem saudade / Como eu”.

“Velha Interrogação”, o último texto desta brevíssima antologia, é também o último poema escrito por Da Costa e Silva. Nele, o poeta se envolve na grande indagação existencial que atravessa os séculos: “de onde viemos? aonde vamos?”


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Destaquei no Facebook, e repito aqui, um episódio da vida de Da Costa e Silva que vale a pena ser contado, envolvendo o famoso Barão do Rio Branco (1845-1912). Monarquista empedernido, José Maria da Silva Paranhos Júnior (este era seu nome — o pai, também “nobre”, era o Visconde do Rio Branco), foi o titular do Ministério das Relações Exteriores no Brasil do final de 1902 até sua morte, em 1912.

Paranhos Júnior era o donatário dessa capitania ministerial. Vejam só o que ele fez com Da Costa e Silva, segundo relato de Guilherme Luiz Leite Ribeiro, no livro Os Bastidores da Diplomacia (Nova Fronteira, 2007, p. 50):

Nos tempos do barão do Rio Branco não havia concurso para ingressar na carreira diplomática, e a seleção era feita pessoalmente por ele, que conversava com os candidatos, em geral pessoas de família conhecida, de preferência bonitos e que falassem línguas estrangeiras. Antônio Francisco da Costa e Silva, ilustre poeta e pai do embaixador e acadêmico Alberto Vasconcellos da Costa e Silva, conversou com o barão sobre a possibilidade de ingresso na carreira, porém o chanceler foi taxativo: — Olha, o senhor é um homem inteligente, admiro-o como poeta, contudo não vou nomeá-lo porque o senhor é muito feio e não quero gente feia no Itamaraty...

Se o candidato a diplomata tinha de ser “bonito e de família conhecida”, o critério do barão era diferenciá-lo de quem? De negros e índios, obviamente! Da Costa e Silva não era negro nem índio, mas tinha cara de nordestino...

Outro absurdo: o barão, ministro da república, continuou até a morte a assinar-se “Rio Branco”, em flagrante desrespeito à Constituição.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado




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Como um rio misterioso

Da Costa e Silva

 

 


 

Pissarro - Lavadeiras - 1895
Camille Pissarro (1830-1903), francês, Lavadeiras (1895)



SOU COMO UM RIO MISTERIOSO...

Sou como um rio que, de tanto
Refletir sombras, se tornou sombrio...
Rio de dor, rio de pranto,
Ninguém sabe o mistério deste rio.

Rio de dor, rio de mágoas,
Ocultando as imagens que refletes,
Rolam em meu ser as tuas águas,
Sob a treva e o silêncio, como o Letes...

 

 

Pissarro - Jovem Camponesa com Chapeu de Palha-1881
Pissarro, Jovem Camponesa com Chapéu de Palha (1881)


 

SOMBRA E NÉVOA

Cai o crepúsculo. Chove.
Sobe a névoa... A sombra desce...
Como a tarde me entristece!
Como a chuva me comove!

Cai a tarde, muda e calma...
Cai a chuva, fina e fria...
Anda no ar a nostalgia,
Que é névoa e sombra em minh'alma.

Há não sei que afinidade
Entre mim e a natureza:
Cai a tarde... Que tristeza!
Cai a chuva... Que saudade!

 

Pissarro - Colhedoras de feno descansando (1891)
Pissarro, Colhedoras de Feno Descansando (1891)

 

[EU SOU TAL QUAL O PARNAÍBA]

Eu sou tal qual o Parnaíba: existe
Dentro em meu ser uma tristeza inata,
Igual, talvez, à que no rio assiste
Ao refletir as árvores, na mata...

O seu destino em retratar consiste,
Porém o rio tudo o que retrata,
De alegre que era, vai tornando triste,
No fluido espelho móvel de ouro e prata...

Parece até que o rio tem saudade
Como eu, que também sou desta maneira.
Saudoso e triste em plena mocidade.

Dá-se em mim o fenômeno sombrio
Da refração das árvores da beira
Na superfície trêmula do rio...



Pissarro-Criada sentada no jardim em Eragny-1884
Pissarro, Criada Sentada no Jardim em Eragny (1884)

 

VELHA INTERROGAÇÃO

Passa a vida? Continua...
Porque o tempo é que flutua,
como um rio de veludo,
sobre todos, sobre tudo...

À sua margem sonhamos:
de onde viemos? aonde vamos?

E o destino indiferente
vai impelindo a torrente...

Passa a vida? Continua...
Com o tempo quem passa é a gente.
Mas, vida, se nós passamos,

de onde viemos? aonde vamos?




poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014

• Da Costa e Silva
   in Poesias Completas
   Nova Fronteira, 4a. ed., Rio de Janeiro, 2000
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* Carlos Drummond de Andrade, "Resíduo", in A Rosa do Povo (1945)
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- Todas as imagens são quadros de Camille Pissarro (1830-1903), artista francês