Número 328 - Ano 13

São Paulo, quarta-feira, 18 de março de 2015

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«Poesia é sempre assim: / Uma alquimia de fetos, / Um lento porejar / De venenos sob a pele.» (Myriam Fraga) *

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Carlos Pena Filho


 Amigas e amigos,


O pernambucano Carlos Souto Pena Filho (1929-1960) foi um desses raros fenômenos de poetas que já nascem prontos. Em sua curta vida ― 31 anos ―, conseguiu escrever um punhado de poemas, notadamente sonetos, que sem dúvida estão entre os mais belos e instigantes da moderna poesia brasileira.


Carlos Pena Filho nasceu no Recife. Descendente de portugueses, fez o curso primário em Portugal e o secundário no Recife, onde se formou em direito, profissão que exerceu ao lado do jornalismo. Começou a escrever bem cedo e publicou seu primeiro trabalho ― um soneto intitulado “Marinha” ― no jornal Diário de Pernambuco, em 1947.


A primeira coletânea de Pena Filho, O Tempo da Busca, saiu em 1952. Em seguida, publicou Memórias do Boi Serapião (1956), A Vertigem Lúcida (1958) e Livro Geral (1959). Lamentavelmente, a vida do poeta, celebrado por gente como Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Gilberto Freyre e Jorge Amado, foi interrompida numa tragédia. Em 2 de julho de 1960, no Recife, um ônibus desgovernado abalroou o carro em que ele estava. Carlos Pena Filho deixou esposa e filha pequena.


Após a morte do poeta, o volume Livro Geral, que reúne todo o seu trabalho, foi relançado e ampliado. Infelizmente, essa obra não está mais disponível. Consegui recentemente adquirir num sebo um exemplar publicado pela Editora Raiz ― por sinal, sem data nem local (suponho seja Recife). A obra do poeta reclama novas edições, com comentários e estudos. E maior divulgação.

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Carlos Pena Filho já esteve aqui no poesia.net em 2003, na edição n. 4, uma das primeiríssimas do boletim. Ele volta agora, com nova seleção de poemas.


Dono de um lirismo criativo e envolvente, Carlos Pena Filho destaca-se pelo clima pictórico de seus textos. Apaixonado pelas cores, ele esbanja imagens nas quais se destacam a luz, os verdes e os azuis. Num poema, seu conterrâneo João Cabral de Melo Neto diz que ele sabia “todos os verdes que há no verde”. Manuel Bandeira o classificava como “poeta encantador” e destinava suas criações à eternidade.


Acredito que os textos reunidos na pequena antologia ao lado justificam plenamente o entusiasmo de Cabral e Bandeira. O soneto “A Solidão e Sua Porta” trabalha com um velho tema. Contudo, as imagens criativas e a fluidez dos versos dão um sabor especial ao texto. E o lembrete final é brilhante: “ainda tens uma saída: / entrar no acaso e amar o transitório”.


O texto seguinte, “Soneto”, é dirigido a uma mulher – “bela e azul”. Aqui, mais uma vez, brilha a inventividade do poeta. Trata-se de um soneto de sensações vagas, mas claro, arejado, colorido. Alguém poderia perguntar: o que diz esse texto? Nada. Mas ninguém precisa de demonstração para perceber que a poesia está ali, viva e pulsante.

O mesmo estilo vago e delicioso se encontra em “Segundo Poema no Vazio”. São dezoito linhas de sete sílabas, com as linhas pares marcadas pela mesma rima. Uma alegria cantante, produzida por um mestre do ritmo e da harmonia. Observe-se que todo o texto se desenvolve num único período, pontuado apenas por vírgulas.


Nesse aspecto, vale notar que o soneto “A Solidão e Sua Porta”, já citado, também contém apenas dois períodos. O primeiro corresponde ao primeiro quarteto. E o outro ocupa o segundo quarteto e os dois tercetos. Textos assim, em mãos menos habilidosas, tendem a se transformar em construções irrespiráveis, difíceis de ler e entender. Não é o que ocorre com os versos de Carlos Pena Filho.


Vem a seguir o poema “Para Fazer um Soneto”, que é uma espécie de receita para a criação dessa composição de catorze versos. No entanto, se nas receitas culinárias os autores se esmeram em apresentar pesos, medidas e procedimentos com exatidão, aqui mais uma vez é tudo vago. É a fluência do verso que vai misturando os ingredientes. No final, a surpresa: não há receita nenhuma, porque no último verso o chefe de cozinha poético manda o interessado começar.


Isso lembra uma tirada de Pablo Neruda: “Escrever é fácil. Você começa com maiúscula e termina com ponto final. No meio, coloca ideias”. “Para Fazer um Soneto” é um desses textos antológicos que, como dizia Bandeira, inscrevem na pedra o nome de Pena Filho.


E aí vem mais um soneto. Desta vez, uma homenagem ao francês Charles Baudelaire, vazada em versos de quatro sílabas. O texto se refere ao poema “O Albatroz”, do homenageado, no qual os marinheiros zombam da falta de jeito da enorme ave marinha, senhora do azul, mas de movimentos canhestros quando mantida no convés de um navio. Mais uma vez, o poema contém uma única frase.


O último texto é “Soneto Oco”, que tem pontos em comum com “Para Fazer um Soneto”. Todavia, como o título sugere, o autor se ocupa aqui em mostrar como erguer um soneto partindo do nada. Criatividade à solta, ele vai dizendo como seria esse objeto poético: sustentado em “lembranças antigas”, é como “madeira apodrecida de coreto”.


O segundo quarteto começa com um excelente achado: “De tempo e tempo e tempo alimentado”. Ouve-se nessa repetição o martelar das engrenagens de um relógio. Brincalhão, o poeta chega a sugerir que este soneto poderia ser produto de geração espontânea: um filho de si mesmo, sem intervenção do poeta. No final, como sempre, o texto se dirige ao leitor e sugere que consulte as próprias lembranças e descubra a si próprio ao ler o soneto – “este jogo de exilado”.


Em muitos aspectos, os escritos de Carlos Pena Filho apresentam uma poesia que é só poesia. Não afirma verdades essenciais, não diz o que se deve fazer ou deixar de fazer, não promete soluções para as dores do mundo. Mas, com certeza, enche-nos o peito de luz, de cor, de alegria.


Por favor, brasileiros em geral e pernambucanos em particular: divulguemos Carlos Pena Filho.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

 


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Receita para um soneto

Carlos Pena Filho


 
 
Aldemir Martins - Gatos
Aldemir Martins (1922-2006), cearense, Gatos




A SOLIDÃO E SUA PORTA

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar,
(nem o torpor do sono que se espalha).

Quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório,
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo que é insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.



Aldemir Martins - Gato Multicor
Aldemir Martins, Gato Multicor




SONETO

Por seres bela e azul é que te oferto
a serena lembrança desta tarde:
tudo em torno de mim vestiu um ar de
quem não te tem mas te deseja perto.

O verão que fugiu para o deserto
onde, indolente e sem motivos, arde
deixou-nos este leve e vago e incerto
silêncio que se espalha pela tarde.

Por seres bela e azul e improcedente
é que sabes que a flor, o céu e os dias
são estados de espírito somente,

como o leste e o oeste, o norte, e o sul.
Como a razão por que não renuncias
ao privilégio de ser bela e azul.




Aldemir Martins - Gato Marrom e Meia-Lua
Aldemir Martins, Gato Marrom e Meia-Lua



SEGUNDO POEMA NO VAZIO

Este vento que chegou
talvez da costa irlandesa
e entrando pela janela
debruçou-se em minha mesa,
e fez agora esse gesto
da entre alegria e surpresa,
é o mesmo que há muitos anos
lavou teu rosto, Teresa,
e te deixou sob a pele
essa invisível tristeza
de quem descobre o que existe
de mágoa, atrás da beleza
e por isso se aremessa,
água solta da represa,
e embora deixando os olhos
nos objetos da mesa
perde o pensamento e a sombra
na fria costa irlandesa.




Aldemir Martins - Família de Gatos
Aldemir Martins, Família de Gatos




PARA FAZER UM SONETO

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.




Aldemir Martins - Dois Gatos Azuis
Aldemir Martins, Dois Gatos Azuis



A CHARLES BAUDELAIRE

Carlos também
embora sem
flores nem aves
vinho nem naves,

eu te remeto
este soneto
para saberes,
se acaso o leres,

que existe alguém
no mundo, cem
anos após

que não vaiou
e nem magoou
teu albatroz.




Aldemir Martins - Gato Amarelo com Fundo Azul
Aldemir Martins, Gato Amarelo com Fundo Azul



SONETO OCO

Neste papel levanta-se um soneto,
de lembranças antigas sustentado,
pássaro de museu, bicho empalhado,
madeira apodrecida de coreto.

De tempo e tempo e tempo alimentado,
sendo em fraco metal, agora é preto.
E talvez seja apenas um soneto
de si mesmo nascido e organizado.

Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado
e nem me lembro quando apareceu.

Lembranças são lembranças, mesmo pobres,
olha pois este jogo de exilado
e vê se entre as lembranças te descobres.



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O LETRISTA CARLOS PENA FILHO



Em gravação de 1962, a cantora Maysa (1936-1977) interpreta "A Mesma Rosa Amarela", do compositor Capiba, com letra de Carlos Pena Filho



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015


Carlos Pena Filho
   In Livro Geral
   Editora Raiz, s/ data, s/ local (talvez Recife)

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* Myriam Fraga, "Arte Poética", in Femina (1996)
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- Imagens: trabalhos do artista cearense Aldemir Martins (1922-2006), todos
  da série "Gatos", que ele pintou por mais de 50 anos.