Número 334 - Ano 13

São Paulo, quarta-feira, 17 de junho de 2015

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«Vamos todos dançar / entre o bonde e a árvore?» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Adriane Garcia
Adriane Garcia


Amigas e amigos,


Para este boletineiro de longa data — que, por obrigação devota, está sempre à cata de novos poetas —, é sempre uma alegria encontrar um escritor como a mineira Adriane Garcia. Nascida em Belo Horizonte (1973), Adriane é historiadora, funcionária pública, arte-educadora e atriz. Escreve poesia, infantojuvenis, contos e textos teatrais.


Em 2013, venceu o Prêmio Nacional de Literatura do Paraná com o livro de poemas Fábulas para Adulto Perder o Sono. No ano seguinte, publicou outra coletânea, O Nome do Mundo. Todos os poemas ao lado foram extraídos desse último volume.


Antes de qualquer outra consideração sobre o trabalho de Adriane Garcia, é importante destacar que se trata de uma poeta dotada de aguda consciência da finitude das coisas e de nós mesmos. Seu lirismo é duro, crespo, eriçado — como a vida. Não é à toa que, no poema “Tropeço”, ela literalmente afugenta o leitor que chega com a expectativa de versos açucarados: “Saia daqui se gosta / De algodão-doce / Glicose / Transformada em poesia / Etérea”.


Numa coletânea que reúne cerca de 90 poemas, o tom dominante não escorrega em nenhum momento no idílio, no autoengano, na ideia de que belas palavras podem ser capazes de alterar a natureza da realidade.


Os poemas, quase sem exceção, são curtos e não excedem a extensão de uma página. Muitos revelam-se menos que curtos: são mínimos — e dizem tudo com apenas dois ou três versos. Um exemplo é a definição de “Vida”: “Carro à deriva: / A enchente carrega / Com gente dentro”. Em idêntico clima situa-se a pessoa que fala em “Corpo e alma”. Com essas duas partes de si mesma atadas a “bolas e ferro e correntes”, ela segue sobre o asfalto quente, com os pés “cheios de crenças e bolhas”.


É forte na poesia de Adriane Garcia a percepção do acaso inventando mudanças de rumo na vida das pessoas, não raro produzindo tragédias. Há mesmo uma ironia melancólica na história do “bezerro fracote” de “... Se Ficar o Bicho Come”. É o animal que, por ser frágil, foi poupado de ser transformado em “bife à mesa”. Mas isso não autoriza grandes esperanças de vida tranquila para o novilho: “Cresceu / Virou boi de piranha”.


A metáfora da vida de gado é recorrente e aparece também em “Boiada”: “Milhares nos carros de boi / Puxando do horário comercial pra casa / Da casa pro horário comercial”. O clima é o mesmo, em “Fisionomias”. No metrô, os rostos parecem diferentes apenas porque “somos apegados a detalhes”. Mas na verdade são todos iguais: todos carregando o fardo da existência. E é para suportar esse peso que o ser humano procura outros semelhantes, fugindo de sua “Solidão”: “Só / O homem / Procura / O outro / Homem / Só”.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



•o•



LANÇAMENTO HOJE, 17/06


Tesoura Cega
• Carlos Machado



Tesoura Cega



Convido os amigos de São Paulo para o lançamento de meu novo livro de poesia, Tesoura Cega, publicado pela Dobra Editorial.

Quando:
Quarta-feira, 17/06/2015,
a partir das 18h30

Onde:
Casa das Rosas
Espaço Haroldo de Campos de Poesia
Av. Paulista, 37 - Bela Vista
São Paulo - SP

 

•o•



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Aqui não se vende algodão-doce

Adriane Garcia


 
 
Edgar Degas - Bailarina sentada 1879-80
Edgar Degas (1834-1917), francês, Bailarina sentada (1879-80)




ESCULTURAS VIVAS

Repare nas mães
Tendo ao colo filhos dormindo:
Pietás de carne e osso
Carregando destinos.




TROPEÇO

Saia daqui se gosta
De algodão-doce
Glicose
Transformada em poesia
Etérea, nuvenzinha de cor
Na mão do anjinho
Que caminha
E não vê a pedra.





Degas - Aula de dança no Opéra 1872
Degas, Aula de dança no Opéra (1872)




CORPO E ALMA

Carrego meu corpo
E ele me carrega
O primeiro ato pesa
O segundo dói

Somos nós dois atrelados
Bolas de ferro e correntes mútuas
Nos calcanhares magros, de hematomas
Nos pés lançados no quente asfalto
Cheios de crenças e de bolhas.




DO MIRANTE

Metade do que tu és
É mentira
Da outra metade, revê
Do que são falas de tua mãe
Do que são ralhos de teu pai
Se és de mágoas
Já não és inteiro
Mergulha no abismo
E te encontra
E sobe como um ressurreto
E vem ver comigo daqui de cima.




Degas - Aula de dança 1873-75
Degas, Aula de dança (1873-75)



TRÊS OLHARES

Os cães têm todos os mesmos olhos
Pedidos vítreos

Os macacos têm todos os mesmos olhos
Lamentos encapsulados

Os humanos têm todos os olhos:
Disfarces da cegueira.



DE CROCODILO

Olho a vida:
Um crocodilo inerte
Tomando sol

... e me olhando

Eu, inerte
Nós dois
Abrindo a boca
E lacrimejando.




Degas - Bailarinas 1884-85
Degas, Bailarinas (1884-85)



... SE FICAR O BICHO COME


Era um bezerro fracote
Por sorte, à fortuna da roda
Deixou de ser bife à mesa

Cresceu
Virou boi de piranha.



FISIONOMIAS

O metrô vai
Carregado de rostos

Este tem uma bolsa
E uma conta para pagar

Aquele tem uma lembrança
Não quer lembrar

Mas o metrô é tão contínuo
Que embala...

E em cada curva
Em cada linha de expressão
Uma história que é a mesma
Para todos

Vá lá, admita,
Somos apegados a detalhes
E é só isso que faz
Rostos diferentes

Aquele outro, tão jovem
Sorri:
Tem um bilhete
E uma inocência.



Degas - Aula de dança 1871
Degas, Aula de dança (1871)




BOIADA

Milhares nos carros de boi
Puxando do horário comercial pra casa
Da casa pro horário comercial
Dormem em pé, cansados,
Ruminam a grama verde que adubam
E não comem

É gado de pouco sonho
De pouca ração
De muito corte.




VIDA

   Carro à deriva:
A enchente carrega
Com gente dentro.




SOLIDÃO


O homem
Procura
O outro
Homem
Só.




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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015




Adriane Garcia
* In O Nome no Mundo
  Armazém da Cultura, Fortaleza, 2014

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* Carlos Drummond de Andrade, "Aurora", in Brejo das Almas (1934)

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- Imagens: trabalhos do pintor impressionista francês Edgar Degas (1834-1917).