Número 342 - Ano 13

São Paulo, quarta-feira, 28 de outubro de 2015

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«O tempo / é escritura de estilhaços. A paz é um pássaro sem asas.» (Myriam Fraga) *

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Alberto Bresciani



Amigas e amigos,


O poeta carioca Alberto Bresciani já esteve aqui nesta página em maio de 2012 (poesia.net 279), após lançar Incompleto Movimento (2011), seu primeiro livro de poesia. Agora ele retorna, com o lançamento de nova coletânea, Sem Passagem para Barcelona (2015).

Nascido no Rio de Janeiro em 1961, Alberto Bresciani graduou-se em direito na Universidade Federal de Juiz de Fora, tornou-se magistrado por concurso público, fez carreira como juiz, desembargador e em 2006 foi nomeado ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Leitor voraz de poesia, brasileira e internacional, Bresciani tem poemas e contos publicados em portais da internet, jornais e revistas especializadas.

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Sobre o livro Sem Passagem para Barcelona, é importante dar este aviso desde a plataforma de embarque: nele o leitor não vai encontrar a Barcelona prometida no título. Nem a capital catalã nem qualquer outra cidade igualmente interessante: “Madri, Paris, Berlim, São Petersburgo, o mundo”, como diz o verso de Cesário Verde.

Barcelona aqui é apenas um símbolo, talvez uma cidade que se deseja visitar, mas para onde não há passagens disponíveis. Ao mesmo tempo, a viagem que se pretende fazer — de lazer? aventura? libertação? — é igualmente um desejo aguado. Barcelona não existe. E a própria palavra, exceto no título, não aparece no livro. Não é por acaso que o poeta e ensaísta Fernando Fiorese diz que Sem Passagem para Barcelona constitui um “jogo de desarmar o leitor”.

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A “viagem” empreendida por um suposto personagem a essa Barcelona mítica e não nomeada é, de certo modo, uma tentativa de escapar ao mal-estar há muito tempo instalado na civilização — e por conseguinte na poesia. Uma poesia que, desde Baudelaire, não se permite mais o conforto da ingenuidade. Hoje, aparentemente, esse mal-estar é mais agudo e dói ainda mais, quando parece não haver saída. Não há mais Xangri-Lás, se é que já houve um dia. (Atenção: não vale a piada — descobri que existe uma cidade chamada Xangri-Lá no Rio Grande do Sul.)

É nesse contexto que se move — ou, a rigor, que não se move — o viajante sem passagem para Barcelona. Não há porosidade possível, não há como escapar do sufoco, situação idêntica à do inseto drummondiano no poema “Áporo”.

Todo o livro é concebido sob o signo da incerteza e da ausência de alternativas. Às vezes, a situação é enfrentada com fortes doses de humor, triste ou mesmo cruel. Mas, em geral, o tom é de puro desencanto.

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Selecionei alguns poemas de Sem Passagem para Barcelona. O primeiro deles, “Sorte”, é também o que abre o livro e começa com uma advertência desagradável: “O destino não nos pertence / nem a deuses runas / ou a leitoras de entranhas”. Portanto, quem cultiva a ilusão de poder antecipar ou controlar o futuro é chamado a tirar o cavalo da chuva logo no introito do livro.

Segue-se o poema “Opção”. Fala-se aí que o padrão arquitetônico vigente são as casas de vidro e, com elas, o escancaramento da vida: “quase tudo se sabe / de lado a lado”. A falta de intimidade é absoluta, inclusive com a violência da “vitrine urbana”, mostrando o “peito rasgado”.

Nem é preciso dizer que somos nós os moradores dessa cidade de vidro. Desesperados, alguns vendem a roupa. Outros chegam a pedir um “tiro na testa”. É interessante notar como o desfecho deste poema, assim como a saída encontrada pelos búfalos em “Sorte”, vai bater no mesmo lugar: a morte.

Em “Perplexidade” — mais uma palavra que define o clima geral dessa coletânea —, o Deus reconhecido pelo personagem está vivo, porém não oferece alternativas amenas. Encontra-se “entre a fome e a fama / em meio ao que explode ou afaga / flor e moeda”.

Em “Aniversário”, o “viajante”, uma pessoa que completa 50 anos, lamenta não ter ganho “astúcia e ciência” com a idade. E observa que seu meio século apenas lançou sobre tudo uma vasta folha de papel em branco. A constatação seria própria para as elegias. Mas o tom é seco, de pura constatação.

A folha de papel, nesta anticomemoração natalícia, me lembra um texto igualmente irônico do poeta baiano Antonio Brasileiro: “A maturidade é, às vezes, cruel: / atira-nos uma folha de papel / ao rosto / e diz-nos: pronto / aí está a tua vida: em branco. / Escreve. Escreve”.

No poema “Clínica”, o viajante virtual percebe que se vive, sofre e morre do mesmo jeito em qualquer lugar do mundo: “aqui / em Bali / Nepal (...)/ em Manaus / Cadaval”. Neste momento se faz, quase claramente, a negação de Barcelona — a cidade de desafogo.

No penúltimo poema da seleção ao lado, o mal-estar atinge a poesia. Agora quem fala é um poeta, que faz reflexões num encontro social, analisa os convidados e ironiza a si mesmo.

Por fim, vem o poemeto “Gotham I”, no qual o sarcasmo é explícito. “Nesta noite Gotham não será salva”, avisa o texto. O herói que redimiria a cidade sucumbiu, não às terríveis forças e maquinações dos inimigos, mas aos seus próprios “hiatos e reticências”. Velho e míope, o homem-morcego, há muito abandonado pela heroína, não aparece para defender a lei e a justiça.

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Não há como ler os versos de Alberto Bresciani e deixar de lembrar, por exemplo, o momento impérvio para os refugiados de guerra e perseguições de várias partes do mundo, notadamente Ásia e África. Perdoem-me pelo “impérvio”, mas é a palavra certa: “que não dá passagem, intransitável”, ensina o Houaiss.

Senhoras e senhores passageiros: não há passagem para Barcelona.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado


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LANÇAMENTO


Mar de Dentro
• Márcia Cavendish Wanderley



Mar de Dentro


A poeta e professora Márcia Cavendish Wanderley lança no Rio de Janeiro seu livro Mar de Dentro, pela Editora da Palavra.

Quando:
Sábado, 9/11/2015,
das 19 às 22 horas

Onde: Blooks Livraria
Espaço Itaú de Cinema
Praia de Botafogo, 316
Rio de Janeiro, RJ


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Sem passagem para Barcelona

Alberto Bresciani


 
 
Samuel Silva - Moça Ruiva
Samuel Silva, português, Garota Ruiva, desenho fotorrealista com caneta Bic



SORTE

O destino não nos pertence
nem a deuses runas
ou a leitoras de entranhas

A nudez e a tardia
indisciplina dos corpos
inutilmente perseguem a luz

Como agora
arriscar as veias?
Onde se apaga
o vazio?

Soube de búfalos
que trocam o cansaço
pela própria morte



Samuel Silva, Bebê nas mãos do pai
Samuel Silva, Bebê nas mãos do pai



OPÇÃO

Arquitetos adotam a transparência
como regra e matéria-prima
cobrem as cidades com casas de vidro
quase tudo se sabe
de lado a lado

é livre a visão
do peito rasgado
da luz que se apaga
dois gatos à espera
papilas que exultam

(o verbo esconder resseca
as coordenadas abertas)

há até quem prefira
vender suas vestes
e assim exposto
no ventre da urbana vitrine
apenas estar
em linha reta

outros rezam
pelo final das tempestades
ou pelo tiro na testa




Samuel Silva - Jaguar
Samuel Silva, Jaguar



PERPLEXIDADE

I

O Deus que conheço
não morreu

Está

Entre a fome e fama
em meio ao que explode ou afaga
flor e moeda

Terras que escorrem
matam crianças
cavalos
a última ave

Mas sim
está


II

Depois do grito do riso
restam farpa tarefa burla
atalho algum que me
engane ou salve?


III

No encalço da crença
um céu branco

estanca




Samuel Silva - Duar irmãs
Samuel Silva, Duas irmãs



ANIVERSÁRIO

Cinquenta anos não vieram
com astúcia e ciência

Não os convidei

Caminhava
quando me acertaram

Com eles se abriu
imensa folha
de papel em branco

encobrindo
o céu
o Cristo no monte
as horas

E eu

— só —

não sei



Samuel Silva
Samuel Silva, Bebezinha



CLÍNICA

        (à maneira de Eltânia André)

I

Sofremos iguais
inacabados e iguais
aqui
em Bali
Nepal

Morremos iguais
ignorantes e iguais
aqui
em Manaus
Cadaval

Uma flor igual
em cada cova
funda ou rasa

II

O relógio desperta
abrem-se os sinais
os filhos de bicicleta




Samuel Silva - Retrato de Mulher
Samuel Silva, Retrato de Mulher



CRISE DA POESIA

Há quase metade de meio século
o marido dela tinha fartos cabelos
negros e lisos
Mas morreu aos vinte e oito anos
de infecção ao extrair o segundo siso

Ainda assim teve cabelos negros e lisos

O desconhecido na cerimônia de casamento
tem bastos cabelos grisalhos
está ali ao lado da mulher
um pouco gorda e muito decotada
e desce os dedos pelo risco
de suas costas nuas

Confortável em seus cabelos de praia
há de fazer churrascos aos sábados
quem sabe jogar buraco às quartas

Alguém diz que busco ser poeta
vinte e quatro horas por dia
e me pergunto se há poesia
em invejar os cabelos do morto
ou do idoso grisalho
que é anônimo
e assim
se basta



Samuel Silva - Moça com brinco de pérola
Samuel Silva, Moça com brinco de pérola (a moça não é a de Vermeer, mas a do filme, Scarlett Johansson)



GOTHAM I

Nesta noite
Gotham não será salva
o herói passou o dia em luta
com seus hiatos e reticências
e esse céu malva arde a febre
das ausências e cobranças

Além disso há a miopia
e alergia a lentes de contato
Não se usa óculos sobre máscara
e faz tempo faz tempo
foi-se a Mulher-Gato



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015


Alberto Bresciani
   In Sem Passagem para Barcelona
   José Olympio, Rio de Janeiro, 2015
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* Myriam Fraga, "Olho de Vidro", in O Risco na Pele (1979)
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- Imagens: trabalhos do advogado português Samuel Silva (1983), que desenha como hobby imagens fotorrealistas usando canetas Bic de oito cores diferentes