Número 356 - Ano 14

São Paulo, quarta-feira, 29 de junho de 2016

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«Se vais desaparecer, para que a eternidade?» (Dante Milano) *

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Nove Poetas Da esq. para a dir. e de cima para baixo: João Cabral de Melo Neto; Alphonsus de Guimaraens Filho; H. Dobal; Lenilde Freitas; Mariana Botelho; Ronaldo Costa Fernandes; Fernando Pessoa; Da Costa e Silva; T.S. Eliot



Amigas e amigos,


Na hora de fazer este boletim, descobri que estava numa situação semelhante à do cronista sem assunto. Após uns dois dias de beco sem saída — agravado por não ter à mão livros onde buscar inspiração —, afinal encontrei uma saída.

Folheei, a esmo, a já extensa coleção de boletins passados. Na edição número 1, o monumental “O cão sem plumas”, de João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Um poema sobre o rio Capibaribe.

Água. Água. Água.

Pronto, resolvi organizar esta edição com poemas centrados nesse líquido que era, para os antigos, um dos elementos básicos da natureza. Este é, portanto, um boletim de rios, mares, fontes, chuvas e seus odores e sensações.

Águas já navegadas aqui no poesia.net.

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ÁGUA DE CARANGUEJOS

Começamos, portanto, com o trecho inicial de “O cão sem plumas”, os primeiros versos do bloco “I. Paisagem do Capibaribe”. Nele se encontra a célebre metáfora que dá título ao poema e caracteriza o rio que não conhece a “chuva azul”, a “fonte cor-de-rosa” e até a “água do copo de água”. Um rio que só sabe de caranguejos, “lodo e ferrugem”.

Mas o cão desplumado, como se vê na sequência do longuíssimo poema, é também uma forma de João Cabral representar o Capibaribe e sua cinzenta convivência com os homens-caranguejos, que também são cães sem plumas. “Difícil é saber / se aquele homem / já não está / mais aquém do homem”. Para ler o poema inteiro — uma leitura, aliás, sempre recomendada —, vá ao boletim número 1.

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DANÇA À BEIRA-MAR

O segundo poema aquoso é “Cantiga de Praia”, de Alphonsus de Guimaraens Filho (1918-2008) e apareceu aqui no boletim n. 8. Nessa cantiga, a beira-mar é o ambiente em que se desenvolve um ritmo de busca e desconsolo. “Que luz chega do outro lado, / do outro rio, do outro mar?”

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RIO DENTRO DO PEITO

As águas seguintes vêm do sertão do Piauí: os rios. Quem pastoreia esse rebanho líquido é o poeta H. Dobal (1927-2008), que está no boletim n. 249. Conhecedor da força simbólica dos cursos d’água, Dobal sabe da integração do habitante com o rio. “Um rio preguiçoso / se compraz no seu curso. Outro rio / subterrâneo se afunda no peito”.

Mais adiante, ele diz: “Um rio move / seus habitantes, seus destinos”. É a mesma visão de outro poeta nordestino, Francisco Carvalho (1927-2013), do Ceará. Na visão de Carvalho, “O mistério / dos rios / é que eles passam / por dentro / de nós / e só depois / desaguam no mar”.

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O PEIXE NA LUA

Nossa busca aquífera continua. Agora, é a poeta paraibana-pernambucana Lenilde Freitas (1939-) quem nos apresenta um peixe em inusitada proeza: ele nada na lua espelhada na água do rio.

Esse peixe lunar, assim como outros poemas aquíferos, está no boletim n. 251, estreia de Lenilde Freitas nesta revista poética.

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TERRA MOLHADA

A próxima água vem da chuva, trazida pela jovem poeta mineira Mariana Botelho (1983-). No poema “Água”, tem-se um momento de breve e intensa celebração sensorial. Não com a água que molha o corpo, mas com o perfume deixado pela chuva sobre a terra e o mato.

O poema de Mariana foi publicado aqui no boletim n. 259.

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RIOS DO CORPO

Em Coimbra, Portugal, diante do rio Mondego, o poeta maranhense Ronaldo Costa Fernandes lembra os rios de São Luís. Ao mesmo tempo, faz um mergulho no próprio corpo e medita sobre os numerosos rios orgânicos, com veias, vasos, pontes e desvios. “O pior rio”, garante o poeta, “é o da mente / que flui sem margens, / desordenado e com várias águas, / águas desiguais e turvas”.

O poema “O Homem Olha o Mondego”, de Ronaldo Costa Fernandes, está no boletim n. 313.

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SOBRE O TEJO MACIO

Já que aportamos em terra portuguesa, continuemos lá. Agora, dois poetas locais nos vão falar de outro rio, o Tejo. O engenheiro naval Álvaro de Campos, formado na Escócia, retorna à capital de seu país no poema “Lisbon Revisited”. No trecho destacado aqui, ele invoca o Tejo macio e diz que Lisboa é uma “mágoa revisitada”.

O outro português a falar do Tejo é Alberto Caeiro, tido como avesso à filosofia. Por isso ele se permite fazer esse jogo entre o Tejo e o rio que corre em sua aldeia. Consta que, ao conhecer Caeiro, o engenheiro Álvaro de Campos o tomou como mestre.

Campos e Caeiro aparecem ambos no boletim n. 250. É dispensável dizer que esses dois senhores são heterônimos do múltiplo Fernando Pessoa.

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RIO MISTERIOSO

Mais um rio deságua em nosso percurso. Desta vez não é desses que correm no chão, mas um rio subjetivo, misterioso, feito de dor e de pranto. Quem navega nessas águas é o simbolista piauiense [Antônio Francisco] Da Costa e Silva (1885-1950), pai do também poeta, diplomata e africanista Alberto da Costa e Silva.

O poema “Sou Como um Rio Misterioso”, de Da Costa e Silva, saiu no boletim 315.

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A MORTE DO FENÍCIO

Para encerrar nossa perambulação aquática, vamos convocar o poeta americano-inglês T.S. Eliot. Ele relata o afogamento de Flebas, navegador fenício, provavelmente um comerciante. O líquido que dá vida também é capaz de subtraí-la.

“Morte por Água”, esse belo poema eliotiano, foi apresentado na edição n. 149.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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Cantigas feitas de água

   • João Cabral de Melo Neto  • Alphonsus de Guimaraens Filho
• H. Dobal  • Lenilde Freitas  • Mariana Botelho
• Ronaldo Costa Fernandes  • Fernando Pessoa 
• Da Costa e Silva  • T.S. Eliot



 
 
Giovanni Dalessi - Maçã
Giovanni Dalessi, holandês, Maçã (2011)




João Cabral de Melo Neto


O CÃO SEM PLUMAS

               (trecho inicial)


A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.

O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.

Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.

Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.



Giovanni Dalessi - A Carta
Giovanni Dalessi, A Carta (2011)




Alphonsus de Guimaraens Filho


CANTIGA DE PRAIA

Estou sozinho na praia,
estou sozinho e não sei.
Que luz adormece a face
se em gritos já me afoguei?

Estou dançando na praia?
Estou dançando? Não sei.
Eu colho com as mãos da ausência
a rosa que não beijei.

Que luz chega do outro lado,
do outro rio, do outro mar?
Estou sozinho na praia...
Ó mundo, vamos dançar!



Giovanni Dalessi - Margaridas
Giovanni Dalessi, Margaridas (2007)




H. Dobal


OS RIOS

Ai rios do Piauí, água rica de peixe
de couro e de escama.

De todos os rios sobra uma cantiga
de bem viver. Um rio preguiçoso
se compraz no seu curso. Outro rio
subterrâneo se afunda no peito.

Campo de areia, água viva nos pés,
água pesada na memória.
Senhor das dimensões um rio segue
suas margens renovadas, ribanceiras
movediças. Um rio move
seus habitantes, seus destinos.

                        Dodó das Cabeceiras
                        conhecedor dos rios
                        com eles aprendeu
                        a plenitude da vida.

Seu ritmo irregular um rio instala
faz a sua própria força. Cava os seus canais
seus tributários arrecada.

Água de beber, água de lavar,
água de nuvem, água do chão.
Móvel. Migrante. Um rio.
Jamais o mesmo.



Giovanni Dalessi - Limão
Giovanni Dalessi, Limão (2008)




Lenilde Freitas


O PEIXE

Nada
o peixe na lua
espelhada na água.
Impele,
leve como num sonho
o bojo vazio.
Alheio
à coruscante dádiva
— que ele sabe breve —
Enxágua seu longo silêncio
no fundo do rio.



Giovanni Dalessi - Mãe e bebê
Giovanni Dalessi, Mãe e bebê (2012)




Mariana Botelho


ÁGUA

Água.

fui sentir o cheiro de
terra molhada.

ficamos ali
eu e meu corpo,
cantando a plenitude do mato
depois da chuva.

Água.

me amei.



Giovanni Dalessi - Madona
Giovanni Dalessi, Madona (2012)




Ronaldo Costa Fernandes


O HOMEM OLHA O MONDEGO

Alguns rios me banham: Bacanga e Anil.
Meu corpo está cheio de rios:
minhas veias são rios vermelhos
que desembocam no mar do meu coração.
Os rios se instalam em mim
em mim me danam, lanhando
por dentro meu corpo, linfáticos e
cheio de incertezas, onde habitam
passado e história, dor e escuridão.
Há rios em mim que desconheço
sua foz, sua embocadura,
de onde nascem, para onde vão.
O pior rio é o da mente
que flui sem margens,
desordenado e com várias águas,
águas desiguais e turvas.
Há rios em mim que nunca supus ter.
Meu pensamento é um rio seco
mas pleno de correnteza e afogamento.

Coimbra, 18.10.2009



Giovanni Dalessi - O Quarto Verde
Giovanni Dalessi, O Quarto Verde (2010)




Fernando Pessoa


O TEJO É MAIS BELO...

                    (trecho inicial)

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

(Alberto Caeiro)



LISBON REVISITED

                    (trecho)

Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflete!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

(Álvaro de Campos)



Giovanni Dalessi - Magnólia
Giovanni Dalessi, Magnólia (2010)




Da Costa e Silva


SOU COMO UM RIO MISTERIOSO...

Sou como um rio que, de tanto
Refletir sombras, se tornou sombrio...
Rio de dor, rio de pranto,
Ninguém sabe o mistério deste rio.

Rio de dor, rio de mágoas,
Ocultando as imagens que refletes,
Rolam em meu ser as tuas águas,
Sob a treva e o silêncio, como o Letes...



Giovanni Dalessi - Magnólia
Giovanni Dalessi, Vanitas (2009)




T.S. Eliot


MORTE POR ÁGUA

Flebas, o Fenício, morto há quinze dias,
Esqueceu o grito das gaivotas e o marulho das vagas
E os lucros e prejuízos.
                                    Uma corrente submarina
Roeu-lhe os ossos em surdina. Enquanto subia e descia
Ele evocava as cenas de sua maturidade e juventude
Até que ao torvelinho sucumbiu.
                                    Gentio ou judeu
Ó tu que o leme giras e avistas onde o vento se origina,
Considera a Flebas, que foi um dia alto e belo como tu.

          Tradução de Ivan Junqueira




DEATH BY WATER

Phlebas the Phoenician, a fortnight dead,
Forgot the cry of gulls, and the deep sea swell
And the profit and loss.
                                   A current under sea
Picked his bones in whispers. As he rose and fell
He passed the stages of his age and youth
Entering the whirlpool.
                                   Gentile or Jew
O you who turn the wheel and look to windward,
Consider Phlebas, who was once handsome and tall as you.





poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2016


João Cabral de Melo Neto
   "O Cão sem Plumas"
   In Poesias Completas (1940-1965)
   José Olympio, 3a. ed., 1979
  Alphonsus de Guimaraens Filho
   "Cantiga de Praia"
   In Água do Tempo (1940-1965)
   Nova Aguilar/INL, 1976
H. Dobal
   "Os Rios"
   In Gleba de Ausentes - Uma Antologia Provisória
   Corisco, Teresina, 2002
Lenilde Freitas
   "O Peixe"
   In Grãos da Eira
   Ateliê, São Paulo, 2001
Mariana Botelho
   "Água"
   Do blog da autora
Ronaldo Costa Fernandes
   "O Homem Olha o Mondego"
   In Memória dos Porcos
   7Letras, Rio de Janeiro, 2012
Fernando Pessoa
   "O Tejo", "Lisbon Revisited"
   In Obra Poética
   Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1977
Da Costa e Silva
   "Sou Como um Rio Misterioso"
   In Poesias Completas
   Nova Fronteira, 4a. ed., Rio de Janeiro, 2000
T.S. Eliot
   "O Homem Olha o Mondego"
   In Obra Completa – Volume I – Poesia
   Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira
   Editora Arx, São Paulo, 2004
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* Dante Milano, "O diabo pensativo", in Dante Milano,
  Obra Reunida
, ABL, Rio, 2004
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* Imagens: quadros de Giovanni Dalessi (1964-), pintor holandês contemporâneo